sexta-feira, 13 de maio de 2016

Maria do Carmo Leite

Nos arredores do Capitólio as meninas cantam pelas ruas. Ouvimos também os sons confusos de idiomas inimagináveis.Nas praças os chamados “ricachones” europeus alugam os carros antigos para passearem por Havana. Muitos vão à ilha, mas poucos a conhecem com profundidade.
“Nuestra América” tão bem definida por José Martí abriga um país de lutas implacáveis contra o imperialismo.
No último dia 27 de março, após a visita do presidente Barack Obama à Cuba, reafirmando um processo de reabertura política, o líder Fidel Castro assinalou em seu artigo El Hermano Obama publicado no jornal Granma:

“Ninguém acalente a ilusão de que o povo deste nobre e abnegado país renunciará à glória e os direitos e à riqueza espiritual que ganhou com o desenvolvimento da educação, a ciência e a cultura”.

Fidel está coberto de razão. A educação cubana encontra-se entre as melhores do mundo.
A professora da Universidade Católica de Santos (SP): Maria do Carmo Leite tem dedicado suas pesquisas acadêmicas ao processo educativo em Cuba. Ao longo dos anos viajou muitas vezes até Havana para solidificar um amplo estudo interessado neste modelo que chama atenção pelas iniciativas bem sucedidas.

Confiram a entrevista:

                                                                                                    Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.


Tecendo em Reverso - José Martí é uma grande referência intelectual para o povo cubano. De que forma a obra deste pensador influencia ainda hoje a educação em Cuba?

MARIA LEITE - O ideário pedagógico de Martí ainda provoca aguçadas reflexões sobre a formação de todos os valores societários da ilha. Acredito que a Ilha nunca poderá abandonar o pensamento martiano. A pedagogia cubana, por mais breve e conciso seu estudo, não pode ser escrita sem referência ao extraordinário papel desempenhado pelo “apóstolo” nacional de Cuba.
Martí foi um homem de firmeza na expressão, de consciência anticolonialista e um alto sentido de solidariedade humana. O jornalismo, conjugado com a intensa atividade política, ocupou grande parte de suas atividades. Como professor, Martí ganhou a vida nas fases mais difíceis, mas não foi pedagogo no sentido estrito do termo, pois sua profissão foi a de advogado, ainda que licenciado em Filosofia e Letras. Apesar do restrito tempo, em seus 42 anos de vida, dedicados ao exercício da docência, os temas educacionais ocupam significativo espaço no conjunto da obra de Martí. O fato do ideário ético-político martiano, impregnado de humanismo pedagógico, privilegiar os valores tornou-se evidente, a partir 1889, quando da publicação da La Edad de Oro, revista voltada para crianças do continente latino-americano ameaçadas pela progressiva perda de sua identidade cultural. Na concepção de Martí, era um fato grave a Educação latino-americana seguir os padrões ou modelos dos sistemas europeus e norte-americanos, desvinculados das realidades socioeconômicas em que se aplicavam. A tradição pedagógica vinculada aos próceres da independência, não apenas de Martí, mas de Félix Varela, Enrique Varona e muitos outros, contribui para uma concepção relativamente autônoma da educação na ilha, com claros reflexos no cotidiano das escolas. Na ordem política, as diferentes etapas da revolução educacional, que se iniciou após 1959, valorizam um legado pedagógico autóctone, o qual contribuiu para a revindicação do trabalho docente em Cuba em um contexto distinto dos postulados neoliberais, oposto do mundo do trabalho que vem do “modelo de competências”, com todas as contradições e o fatalismo de disputas competitivas que ele suscita e, consequentemente,  a constatação de que ser competente representa, também, saber transgredir e até corromper.


Tecendo em Reverso - Como o sistema educacional cubano agrega escola, família e organizações sociais?

MARIA LEITE - A importância destinada aos conselhos de direção, de escola e de grado e a forma sistemática como eles atuam constituem um avanço nos projetos da escola cubana. Uma das ponderações relacionadas ao que Zeichner chama ilusão da reflexão é a insistência em que os professores podem pensar sozinhos sobre seu trabalho. Uma grande parte do discurso sobre o ensino reflexivo faz pouco sentido, pois fala-se pouco da reflexão enquanto prática social, através da qual grupos de professores podem apoiar e sustentar o crescimento uns dos outros. De acordo com os Informe de Seguimiento de la Educación para Todos en el Mundo da Unesco um dos pontos fortes da educação em Cuba é o mecanismo para compartir experiências. Concordo com tais conclusões, na medida em que os debates promovidos nos coletivos das escolas e nos órgãos de direção, contam com o envolvimento significativo dos atores do processo, mobilizados em razão da urgência e da extensão dos problemas. No modelo projetado para a escola em Cuba, as relações entre os estudantes, os coletivos de pioneiros, os claustros, as organizações de massas, o conselho de escola e a comunidade devem contribuir para formar nos alunos uma cultura de diálogo e debate, que favoreça atitudes positivas a respeito das relações interpessoais e das tarefas revolucionárias das novas gerações, como se espera numa democracia participativa.
 O conselho de direção é composto pelo diretor, secretário docente, chefes de grado, guia base, secretários do núcleo do partido, comitê de base da União de Jovens Comunistas, seção sindical, presidente de conselho de pioneiros, representante da Federação dos Estudantes Universitários, médico escolar, subdiretor docente, administrador e subdiretor do internato e de produção, quando houver. A frequência de reunião desse conselho é mensal, com a função de elaborar o diagnóstico integral da escola e da comunidade, promover o trabalho político e ideológico, avaliar o cumprimento dos fins e objetivos de cada etapa do curso escolar, adotar estratégias elegendo prioridades como critério, determinar causas e responsáveis por problemas, elaborar os objetivos de trabalho para cada etapa, planejar o trabalho docente, preparar as atividades diferenciadas para atender aos professores e alunos, planificar treinamentos metodológicos  conjuntos e inspeções, programar os temas de discussão no conselho técnico, no claustro e no conselho de escola e, finalmente, atender e estimular seus quadros de trabalhadores.
O conselho técnico é presidido e dirigido pelo diretor da escola em integração com os chefes de grado, secretário docente, guia base e bibliotecária. Nesse conselho, concretiza-se o planejamento das ações preparadas pelo conselho de direção. Sua frequência é mensal, com as funções de planificar e desenvolver atividades metodológicas para cada grado em razão das necessidades do coletivo pedagógico, preparar estratégias com base no diagnóstico e prognóstico de desenvolvimento dos alunos, analisar os resultados das inspeções realizadas durante a etapa, coordenar e aprovar as práticas de laboratórios concebidas no planejamento do processo educativo e no trabalho da biblioteca escolar, por em prática os métodos propostos nas atividades e analisar os resultados da avaliação do desenvolvimento do processo docente.
O conselho de grado é dirigido pelo chefe de grado e integrado por todos os professores, os trabalhadores sociais e os instrutores de arte. Nessa instância são controladas as ações político-ideológicas e o desenvolvimento do processo pedagógico dos grados.  Os encontros são semanais, com duração de quatro horas. Suas funções são discutir o processo de entrega pedagógica e o aperfeiçoamento do expediente acumulativo do escolar, definir as estratégias de atenção à diversidade entre os alunos, elaborar os projetos de cunho metodológico, analisar o cumprimento dos objetivos de cada grado, propor meios para alcançar a interdisciplinaridade, projetar as linhas de trabalho científico (investigação e comunicação de resultados), coordenar os eventos da escola, viabilizar ações de entrosamento entre professores, bibliotecários, técnicos de laboratório e oficinas, ponderar sobre os resultados da avaliação do pessoal docente e, finalmente, planejar estratégias de atividades com as famílias e com a comunidade.
O conselho de escola constitui a esfera encarregada de promover a participação efetiva da família. Esse órgão deve elaborar projetos educativos, bem como acompanhar sua execução. Os encontros são mensais e suas funções são incentivar os pais a integrar  múltiplas atividades promovidas pela escola, analisar a evolução dos alunos com dificuldades, incorporar a comunidade ao trabalho de prevenção com menores que apresentam problemas de disciplina e aqueles que provêm de lares em desvantagem social ou situação de risco, favorecer o desenvolvimento psicológico e a saúde da família mediante a escola de pais, organizando palestras, debates e outras modalidades de orientação, contribuir no desenvolvimento do currículo escolar, além de valorar as opções pertinentes à continuidade de estudos dos alunos.
O claustro é a instância presidida pelo diretor, com a participação de todos os professores do centro, mais os convidados representantes das organizações, incluindo as estudantis. Os encontros desenrolam-se três vezes, no mínimo, em um ano. Suas funções são analisar os resultados dos indicadores de eficiência do centro e sua comparação com iguais etapas de outros cursos, discutir coletivamente as estratégias que propiciem o sucesso das aspirações educativas na escola.

  
Tecendo em Reverso - Em quais circunstâncias deu-se seu percurso metodológico em relação aos estudos sobre a escola secundária cubana?

MARIA LEITE - A principal pesquisa de campo que realizei na Ilha, como aluna do mestrado em Educação, entre 2003 e 2006, objetivou investigar o processo de formação do professor generalista integral – o PGI – na educação secundária básica em Cuba, destinada aos alunos, entre 12 e 14 anos, dos 7°, 8° e 9° grados, dentro do projeto em curso no sistema cubano de ensino, a partir do ano de 2001. A investigação buscou repensar, cada vez mais, que o locus de discussão dos saberes constituintes da docência e das especificidades da ação educativa a ser privilegiado é a própria escola, além de contribuir para o entendimento de novos vínculos entre o trabalho e a educação. As reflexões apresentadas ponderaram sobre a gama de possibilidades decorrentes do ato de deslocar a formação de professores da universidade para as salas de aula da educação básica. As causas que induziram as mudanças foram desencadeadas no momento histórico, o “Período Especial”, encetado em Cuba no ano de 1991, com a queda dos regimes socialistas no Leste Europeu. Até hoje, em 2016, as transformações no campo político-social na Ilha ainda estão influenciadas por inúmeros fatos recentes, sem um contexto sedimentado que permita alusões conclusivas.
Meu primeiro contato com o Sistema Nacional de Ensino em Cuba reporta-se à década de 80, quando visitei as Cidades Escolares “Libertad”, em Havana, e “26 de Julio”, em Santiago. A participação em inúmeros eventos educacionais realizados na Ilha, em diversas províncias do país, propiciou-me o fortalecimento de elos com a educação cubana e o adentrar à compreensão das situações vivenciadas na ilha. Da frequência aos institutos superiores pedagógicos – os ISPs – e às escolas extraí significativos elementos. Entretanto, o contato com os maestros, as famílias e as organizações de massa, em diversas viagens de retorno a esse país, possibilitou-me formular caminhos para a construção de uma postura crítica em relação aos processos educacionais, tanto em Cuba como no Brasil. O percurso metodológico fundamentou-se em uma abordagem qualitativa do tipo etnográfico. O início da análise documental alicerçou-se em relatórios científicos, elaborados pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas de Cuba.


Tecendo em Reverso - Nos debates mundiais sobre educação, vemos em Cuba uma espécie de paradigma positivo para os outros países. O que diferencia esta orientação educativa das demais?

MARIA LEITE - Acredito que o maior diferencial em relação a distintas reformas, realizadas em outros países, é a constância nos investimentos e a forte determinação política que o Estado imprime à educação. A formação do professor como militante político tem requerido, além dos saberes docentes, o preparo na qualidade de transmissor dos princípios basilares da Revolução. O professor é visto pela sociedade como um soldado da independência política e econômica do país.
O que me parece significativo na experiência em Cuba é a preocupação com o envolvimento dos especialistas das universidades pedagógicas no plano metodológico e teórico, e a sua inserção na dinâmica diária dos centros educativos. Outra questão considerável é o cuidado em derrubar as fronteiras em torno das pesquisas realizadas, que devem apresentar uma linguagem direta e compreensível aos maestros em formação, principalmente em seus itens conclusivos, nos quais se arrolam as recomendações decorrentes dos estudos realizados, evitando academicismos exagerados e desnecessários.  A preocupação com a pessoa do maestro é indissolúvel nas políticas de melhoria das escolas como espaços concretos.
A ambiguidade das reformas em curso no mundo é sintetizada pela tensão entre o “barato” e o “melhor”, na qual a lógica do mercado, em muitos casos é a única levada em consideração. Creio existir um consenso que não se faz boa educação e nenhum país pode oferecer aos seus cidadãos serviços sociais razoáveis sem uma opção clara pela garantia dos investimentos que permitam a sua oferta pública.  Cuba situa-se no grupo de alto rendimento, apresentando elevado índice para o produto nacional bruto, aplicado na educação, juntamente com a Finlândia, país industrializado com um sistema educativo de sólida tradição.


Tecendo em Reverso - No que diz respeito à formação do professor, também encontram-se por estas terras dificuldades imensas oriundas, principalmente de planos advindos dos governos que vão mudando ao sabor de cada nova gestão e, sempre coadunados aos ditames internacionais. Como se dá a formação dos docentes em Cuba e, em que ela se diferencia da formação dos professores brasileiros?

MARIA LEITE - O processo educativo em Cuba não pode ser entendido sem o vínculo com as empreitadas históricas, que cunharam um imaginário de vertentes relativo às lutas de liberação, desde a época colonial. O caráter cubano emergiu de uma “cultura de resistência”, consolidada nas lutas, ao longo de trinta anos do século XIX, nas quais pereceram quatrocentos mil cubanos, ou seja, cerca de um terço da população da ilha na época. A Campanha Nacional de Alfabetização de 1961 conjurou dialeticamente fatores sociais que permaneceram dispersos durante a primeira metade do século passado, contribuindo para que o fazer educativo assumisse uma dimensão político-social e o ensino fosse convertido em instrumento de uma cultura participativa, motivador de constantes reflexões acerca dos problemas de Cuba e dos de âmbito internacional, que tendem a afetar a vida do país.
 A visão retrospectiva da formação docente em caráter emergencial, nos diferentes contextos que evoluem imbricados ao processo político-social do país, afasta as transformações projetadas para a escola cubana do perfil das mudanças com base em formulações que partem do zero, sem recuperar a experiência e as pesquisas disponíveis, desconsiderando as condições reais e específicas de implementação. Ao movimento global, pautado pela inauguração de novos projetos a cada gestão, que muitos denominam “onda reformista”, pode ser debitado o desperdício de importantes recursos, uma vez que a descontinuidade ignora o esforço empreendido pelos coletivos escolares, o levantamento de dados e a análise de relações do saber historicamente construído. Muitas das reformas pretendidas não chegam às salas de aula ou não alteram em profundidade as suas práticas cotidianas. As chamadas inovações são introduzidas, sem uma avaliação dos erros e avanços das lições que poderiam ser extraídas dos programas que “caíram da moda”. Sem visão retrospectiva os modelos procuram soluções rápidas e que não armazenem dividendos para governos com mandatos já concluídos. As reformas movem-se no imediatismo, sem sobrevida garantida em futuras administrações.
No Brasil, do ponto de vista do professor, os ciclos e a sistemática de promoção dos alunos apareceram como forma de uma espécie de retirada de seu poder e um acuamento do controle sobre o processo de trabalho. Dessa forma, prolifera até hoje, em minha opinião, a ideia de que professor já não tem que se preocupar com os resultados de aprendizagem dos alunos, pois o sistema quer que ele “empurre o aluno para frente a qualquer custo”. Essa é uma face oposta ao que ocorre na escola cubana.  Dessa maneira, ocorre no Brasil uma espécie de  desresponsabilização pelo processo de ensino.
Entretanto em meio aos caminhos que tem sido construídos e às soluções propostas no modelo em Cuba, existem dilemas e tensões difíceis de resolver, inscritos na problemática geral do país, sobretudo no conflito entre a lógica da emancipação e da regulação. A possibilidade de participação na tomada de decisões ainda gera fortes barreiras nos professores, no pessoal de direção e nos próprios estudantes. A resistência a muitas mudanças que ocorrem atualmente não é mais que uma expressão do temor e da insegurança que podem experimentar as pessoas diante da autonomia para a qual não estão suficientemente preparadas, habituadas, por longos anos, a formas de trabalho que asfixiavam suas potencialidades para a criação e a inovação pedagógica.
Contudo, as experiências educativas são próprias de cada lugar e não é um processo simples transferir inovações. Quero salientar o aspecto fundamental propício à Educação cubana – as raízes de reflexão dialética fincadas nas circunstâncias históricas locais –, o que possibilita abarcar com mais facilidade as incoerências dos modelos anteriores. Os estudos indicam que há uma atenção voltada aos possíveis desacertos e à consciência crítica de repará-los com prontidão. As conclusões, portanto, acumuladas em retrocessos e avanços, aliadas ao resgate das experiências coletivas no campo educacional, desde a década de 60, representam um fator decisivo na efetividade das transformações. O que foi possível inferir, deste processo de investigação, é que os institutos superiores pedagógicos em Cuba criaram um caldo de práticas, acumuladas ao longo de quase 50 anos na formação de professores, capaz de trabalhar os problemas de forma abrangente e com a urgência requerida pela complexidade do processo histórico cubano.












2 comentários:

  1. Excelente entrevista. Opinião muito lúcida e consistente. É capaz de analisar não apenas a educação cubana, que muito interesse suscita, mas de identificar os problemas que enfrentamos na formação de professores brasileiros. Parabéns! Um abraço carinhoso para as amigas queridas. Rosana Pontes.

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