terça-feira, 23 de agosto de 2016

Maria Cláudia Saccomani

Em Cada coisa a seu tempo tem seu tempo o poeta Fernando Pessoa escreve:
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
Esses versos nos remetem ao posicionamento romantizado tanto na arte como na educação em relação à imaginação infantil. Muitos autores colocam nas crianças capacidades inatas ligadas, por exemplo, à criatividade. Rechaça-se a escola, pois nela estariam os exterminadores de um processo lúdico grandioso que os pequenos supostamente teriam consigo. Discutindo estas questões encontra-se a pesquisadora Maria Cláudia Saccomani que possui graduação em pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É mestre em Educação Escolar pela mesma Universidade. É integrante do grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educação. Atualmente desenvolve como doutoranda sob a orientação do Prof. Dr. Newton Duarte suas pesquisas sobre o desenvolvimento da língua falada e escrita na educação infantil na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica.
Sua dissertação de mestrado destinou-se ao estudo da criatividade na arte e na educação escolar à luz de Georg Lukács e Lev Vigotski e é sobre ela que a pesquisadora nos fala nesta entrevista.


Confiram:

                                                                Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.

Tecendo em Reverso - Quais foram as demandas que a levaram a pesquisar: “A CRIATIVIDADE NA ARTE E NA EDUCAÇÃO ESCOLAR: uma contribuição à pedagogia histórico-crítica à luz de Georg Lukács e Lev Vigotski”?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Constatamos uma falta de clareza no âmbito educacional acerca do que seja criatividade e como essa capacidade humana se desenvolve. Identificamos uma generalizada aceitação da criatividade como um dom ou potencial individual inato que se desenvolve por meio de relações espontâneas com o ambiente cultural, não necessitando da transmissão sistemática do conhecimento e até mesmo a ela se opondo. Para as pedagogias hegemônicas, ensino e criatividade são compreendidos como polos que se excluem, sem qualquer movimento dialético.  Nesse sentido,  defendemos a necessária superação de ideias que apresentam o ato criativo como uma expressão livre e natural do psiquismo humano. Nosso objetivo reside em mostrar que a criatividade não é uma propriedade psíquica alheia à realidade concreta, mas sim um comportamento complexo culturalmente formado, dependente do trabalho pedagógico orientado pelo que há de mais desenvolvido na cultura. Assim, a educação escolar promove a criatividade quando cumpre sua função de socializar, de modo sistematizado e planejado, o legado cultural em suas máximas expressões, como postula a pedagogia histórico-crítica.

Tecendo em Reverso – Por conta de concepções equivocadas acerca da educação infantil, muitos professores tratam de arte na sala de aula, como para preencher um espaço com desenhos e atividades empobrecedoras. De que forma a arte enviesada em seu contexto histórico e crítico pode promover a emancipação humana?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – As diferentes concepções de educação infantil e de desenvolvimento humano presentes no campo educacional corroboram em práticas pedagógicas que pouco contribuem para a organização do trabalho pedagógico nesse segmento de ensino. Por um lado, há ideários centrados numa perspectiva antiescolar, que entendem a criança como protagonista do trabalho pedagógico e a criatividade como fruto de interações espontâneas com a cultura, que seria prejudicada pelo trabalho diretivo e intencional do professor. Por outro, há um desconhecimento sobre o que é arte e qual o seu papel na formação humana, o que por sua vez, resulta em práticas pedagógicas estruturadas a partir de atividades mecânicas e monótonas, que não estão em consonância com o período de desenvolvimento em que as crianças se encontram, nem tampouco são  promotoras do desenvolvimento da sensibilidade estética.
            Nesse sentido, cabe questionar qual o critério utilizado, pelo professor, para selecionar esse desenho (atividade) e não outro(a)? Quais objetivos e conteúdos estão presentes neste planejamento pedagógico? Defendemos, na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, a socialização da cultura acumulada historicamente em suas máximas expressões, desde a mais tenra idade. Assim sendo, a organização do ensino na educação infantil deve ter como norte a produção das máximas potencialidades humanas  objetivadas na cultura em cada aluno. Como patrimônio cultural,temos  ao lado da ciência e filosofia, as objetivações artísticas, que são produtos do trabalho dos seres humanos e, portanto, não podem ser propriedade apenas da classe dominante.
            A educação escolar deve colocar os alunos em contato com aquilo que não tem acesso em sua vida cotidiana, ampliando seus horizontes para além daquilo que já está dado. Entendemos que a escola deve promover a consciência estética, garantindo o  contato das crianças com as expressões artísticas desde os primeiros anos de vida. Esse contato, quanto antes for oportunizado, pode ser determinante da futura relação do indivíduo com o patrimônio cultural artístico.
            O professor, nesse sentido, precisa ter uma clara compreensão do que é arte, sua necessidade, papel e significado na formação dos seres humanos. Questão complexa para ser explorada de forma sintética. Grosso modo, é preciso compreender que os sentidos humanos pressupõem uma base biológica, mas não se limitam a ela, ou seja, pela apropriação da cultura, deixam de ser tão somente biológicos e passam a ser essencialmente sociais. Como bem explicou Marx, a formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história humana até o presente momento. Assim sendo, desenvolvem-se no decorrer do processo histórico-social. Portanto, os sentidos, as sensações e a percepção precisam ser formadas e educadas em todas as crianças. Lutar contra a alienação, tendo como direção a emancipação humana, significa possibilitar que as conquistas da humanidade se objetivem na particularidade da vida dos sujeitos. Sabemos que a escola, por si só, não transforma a realidade, mas forma e transforma o psiquismo dos sujeitos que, em sua ações concretas, almejam fazê-lo.
           

Tecendo em Reverso – A imaginação infantil é altamente apreciada pelos pais, e até mesmo por professores. Coloca-se a escola como um local onde a criança terá sua criatividade decepada pelo modo de ensino. Como transformar tais concepções para o avanço de uma atuação mais sólida dos professores que garantirá o aprendizado dos clássicos pelos alunos?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – É bastante disseminada a ideia de que as crianças têm uma rica imaginação e a escola, ao transmitir conhecimentos, acaba por atrofiar essa capacidade. Porém, baseando-se em Vigotski, a professora Lígia Márcia Martins em seu livro “O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar – contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica” mostra-nos que esse é um equívoco conceitual, pois se o desenvolvimento da imaginação fosse mais fértil na infância que na idade adulta, este seria um curso contrário à concepção de desenvolvimento na medida em que a imaginação seria uma função psíquica com processo “involutivo”, isto é, iniciaria na infância em sua máxima plenitude e caminharia em direção ao seu fim e, portanto, não teria o efeito de desenvolver-se. Em contrapartida, evidenciamos que a imaginação é uma função altamente complexa, dependente do pensamento abstrato.
            Sem o ensino sistematizado e orientado por conteúdos não cotidianos,  conteúdos clássicos, não há abstração e, na ausência desse pensamento, não há imaginação e criatividade. Somente com liberdade interna de pensamento, o indivíduo pode romper com aquilo que memorizou, transformando a imagem do que existe em nome de algo que possa vir a ser. Para criar algo novo, faz-se necessário a apropriação  daquilo que já existe!
            Com efeito, confunde-se rica imaginação infantil com as explicações fantasiosas que a criança constrói sobre a realidade baseadas nos limites do desenvolvimento de sua consciência e de seu pensamento. As crianças, em suas explicações, desconsideram (porque ainda não conhecem!) as leis objetivas que regem a realidade concreta. Essas explicações infantis, por mais encantadoras que pareçam aos olhos dos adultos, precisam ser superadas em direção ao desenvolvimento do pensamento conceitual.
            Ademais, é comum adjetivar a brincadeira de papéis (jogo protagonizado ou faz de conta) como máxima expressão da imaginação infantil, como um momento em que a criança se afasta da realidade para vivenciar o “mundo da imaginação”.  Consideramos que essa ideia é um desconhecimento sobre o desenvolvimento psíquico em geral e, em especial, sobre o papel da brincadeira no desenvolvimento infantil. A psicologia histórico-cultural nos mostra que a brincadeira é uma atividade em que a criança amplia seu conhecimento sobre o mundo, e não uma atividade em que se distancia dele. A partir de Vigotski, podemos dizer que não é a imaginação que impulsiona os jogos simbólicos, mas é a atividade da brincadeira que exige processos imaginativos, visto que conclama, por sua estrutura, papéis e situações imaginárias, que por sua vez, partem da vivência concreta da criança com conteúdos determinados pela percepção que ela tem do mundo objetivo e não de modo alheio à realidade concreta.
            Entendemos que a brincadeira é, de fato, uma atividade essencial ao desenvolvimento infantil. Na educação escolar, quando devidamente orientada, representa um grande salto qualitativo nos conhecimentos que a criança tem sobre o mundo. Entretanto, não se pode perder de vista que este é o início do desenvolvimento da imaginação e não sua máxima expressão.  É preciso, pois, superar os ideários pedagógicos que compreendem a imaginação e a criatividade em suas manifestações aparentes para que os professores, por meio de suas ações concretas, possam lidar com o fenômeno da criatividade avançando na direção da captação de sua essência.

Tecendo em Reverso – No seu trabalho lemos: “O psiquismo humano é produto social e é por isso que a pedagogia histórico-crítica defende a educação escolar como espaço privilegiado para o desenvolvimento humano, para a produção da humanidade em cada aluno”. Como você avalia hoje a escola em face ao modo de produção capitalista?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Em ligação com a pergunta anterior, é preciso destacar que, dadas as condições de vida e educação na sociedade contemporânea, grande parte das pessoas não alcança patamar superior de desenvolvimento psíquico, ou seja, não chega a desenvolver o pensamento por conceitos e, consequentemente, a imaginação não se desenvolverá em plenitude. Assim sendo, em face da alineação da sociedade capitalista, nem todas as pessoas são imaginativas. A falta de imaginação, portanto, não pode ser explicada à luz da subjetividade individual, mas sim como uma expressão psicológica da alienação, visto que o sujeito é desprovido das condições de vida e educação requeridas ao seu desenvolvimento psíquico.
            A criatividade não resulta de mecanismos inatos e hereditários, mas desenvolve-se por meio da apropriação da cultura. Trata-se de um desenvolvimento histórico-cultural e, portanto, depende da produção na subjetividade de cada aluno daquilo que já foi produzido pela humanidade no decorrer da história. É preciso, pois, que a escola cumpra sua função precípua: a transmissão dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos em sua máxima expressão.

Tecendo em Reverso – No processo das traduções as leituras de Vigotski no Brasil sempre foram interpretadas ao sabor das circunstâncias, ou seja, nem sempre a teoria original foi respeitada em seu método. Ao seu ver qual a grande contribuição do psicólogo russo para a educação brasileira?

MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Zoia Prestes, em sua tese de doutorado, discute sobre as obras de Vigotski traduzidas para a língua portuguesa e aponta que as traduções da obra vigotskiana demonstram inúmeros equívocos (propositais ou não) que modificam essencialmente a compreensão de conceitos da teoria e destorcem as ideias do psicólogo russo ao sabor das circunstâncias, como você bem colocou na questão. Esse problema também foi apontado pelos estudos do Professor Newton Duarte, quando  denunciou os desvios das ideias vigotskianas contidas em trabalhos que se propuseram a divulgar a obra do autor.
            Ao meu ver, a grande contribuição de Vigotski reside na tese da natureza social do psiquismo humano. Quando o psicólogo russo aponta o papel dos signos na transformação das funções psíquicas elementares na direção das funções psíquicas superiores, evidencia que o desenvolvimento é um processo mediado e subjugado ao ensino. Essa teoria psicológica ao evidenciar que o desenvolvimento não é natural e espontâneo, mas dependente da apropriação da cultura, sinaliza a valorização do ato de ensinar e, consequentemente, a valorização do trabalho realizado pelo professor como aquele que, diferente do que as pedagogias hegemônicas afirmam, ensina!!!

Dica de Leitura:



terça-feira, 2 de agosto de 2016

Julia Malanchen

Nesses dias em que a educação brasileira mais uma vez se defronta com o caos e, parafraseando Caetano Veloso em Tropicália: “ Os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis” . O país enfrenta medidas que nada mais fazem do que reforçar o silenciamento e a ignorância do povo. Por um lado as queixas repletas de razão se multiplicam, por outro ouvimos vozes dissonantes num processo enriquecido de luta.
Julia Malanchen é graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná com mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Possui doutorado em Educação Escolar pela Unesp. Atua como docente no curso de pedagogia da Unioeste / Foz do Iguaçu.
Nesta entrevista conversamos com a pesquisadora sobre seu mais recente livro: Cultura, Conhecimento e Currículo: contribuições da pedagogia Histórico-Crítica, publicado pela editora Autores Associados.
Foto: Divulgação

Confiram:

Tecendo em Reverso – Como se deu o interesse por pesquisar “Cultura, Conhecimento e Currículo”?

JULIA MALANCHEN –  A escolha dessa temática como objeto de estudo no doutorado deu-se devido à minha participação, entre os anos de 2006 a 2009, como uma das coordenadoras do processo de elaboração do novo currículo, na Secretaria Municipal de Educação de Cascavel no Paraná. O Currículo foi elaborado para as etapas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental e para as modalidades de : Educação de Jovens e Adultos e  Educação Especial.
O currículo do município de Cascavel teve como referencial teórico o materialismo histórico-dialético, a psicologia histórico-cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica. Devido a esta opção teórica, encontramos diversas dificuldades no processo de discussão e elaboração da proposta curricular. Uma das principais foi a falta de referências bibliográficas para a definição de elementos importantes do currículo a partir da concepção teórica adotada e que contribuíssem para a seleção de conteúdos nas diversas disciplinas.
As dificuldades se acentuaram, em nossos estudos e elaborações, porque os documentos orientadores, encaminhados pela diretoria de Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica (DCOCEB), vinculada à Secretaria de Educação Básica – SEB/MEC direcionam seus fundamentos pela perspectiva multicultural, portanto, distinta da opção feita pela Rede Pública de Ensino Municipal de Cascavel.
Mediante esta experiência no município de Cascavel e o quadro das políticas curriculares nacionais, surgiu meu interesse em direcionar minha pesquisa no sentido de contribuir com a discussão sobre a questão de uma teoria curricular e a Pedagogia Histórico-Crítica, visto que esse é um elemento de suma relevância, levantado em minha prática social e no campo dos estudos sobre o currículo.


Tecendo em Reverso – De que maneira o relativismo cultural orientado pelas políticas curriculares nacionais pode direcionar princípios ideológicos contrários a uma educação revolucionária?

JULIA MALANCHEN – Pude observar, durante minha pesquisa, que toda a discussão sobre currículo e elaboração das diretrizes curriculares nacionais nos últimos anos, foi direcionada pela questão do respeito à diversidade cultural e ao pluralismo de ideias, que de forma direta tem incluído o discurso relativista nos documentos nacionais que orientam a formação inicial e continuada de professores, assim como a elaboração de currículos.  A partir do discurso relativista/multiculturalista, é condenada a ideia de que existam conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos cujo grau de riqueza, desenvolvimento e universalidade justifique seu ensino a todos os indivíduos. A objetividade e a universalidade do conhecimento não são consideradas relevantes, visto que se tornaram um desrespeito às culturas populares que devem ser consideradas e valorizadas num currículo escolar. Esta defesa está pautada num outro discurso: o da humanização do capitalismo por meio de atitudes que valorizem a democracia política e cultural.  Isso é problemático porque segundo os multiculturalistas, a cultura é uma forma geral de vida de um determinado grupo social, com interpretações e visões de mundo por este adotadas. Estes afirmam ainda que a inclusão dessa forma de cultura no currículo pode resultar em respeito e receptividade às culturas dos educandos, por mais desprestigiadas que sejam. É realizada uma defesa, portanto, de conhecimentos ou saberes populares, não havendo hierarquia entre conhecimento deste ou daquele grupo, deste ou de outro momento histórico, desta ou daquela etnia, pois afirmam ser necessário romper com o “daltonismo cultural” dentro do espaço escolar.
Nesta direção, os multiculturalistas, argumentam a favor de princípios da diversidade cultural, pelos quais acreditam “intensificar a sensibilidade” dos professores e gestores, para a existência de uma pluralidade de valores e culturas, no “interior de cada sociedade” e com isso entendem como possível resgatar manifestações culturais de grupos ameaçados, e organizar a participação de todos num esforço para diminuir as injustiças e opressões e restringir preconceitos.
A articulação do pensamento pós-moderno e relativista com as bases do Multiculturalismo é claramente observada em seus pressupostos, como assinalo a seguir: a) considera-se impossível a superação do capitalismo, da propriedade privada dos meios de produção e da divisão social do trabalho limitando-se as lutas sociais ao objetivo de aquisição, efetivação ou ampliação de direitos dos grupos subalternizados e diminuição das injustiças sociais e preconceitos; b) Abandona-se a luta unificada, pautando-se no entendimento de que a luta de classes não é o motor da história; c) critica-se qualquer pretensão ao conhecimento objetivo e nega-se que existam conhecimentos com maior nível de desenvolvimento, transformando tudo numa questão de reconhecimento do saber do cotidiano de cada grupo, numa espécie de centralidade epistemológica do cotidiano; d) a ciência é vista apenas como uma maneira pela qual um grupo social, o dos cientistas, busca dar algum significado a fenômenos naturais ou sociais, da mesma forma que outros grupos buscam a mesma coisa por meio outros saberes; e) celebram-se as diferenças, o local e o indivíduo recluso à sua subjetividade, negando-se a possibilidade de compreensão da realidade como um todo estruturado e dos processos essenciais à dinâmica que movimenta esse todo; f) assim como o conhecimento sistematizado nos livros é posto sob suspeita, a escola também o é, já que o saber relevante para a vida seria construído diretamente na vivência cotidiana e nas lutas sociais; g) a cultura oral é considerada mais rica e significativa do que a escrita; h) a cultura parece ser entendida mais como uma questão de reconhecimento das diferenças entre “nós” e “os outros”; j) Afirma-se que a linguagem da escola é colonizada, etnocêntrica, discriminadora e precisa ser descolonizada; l) nega-se o ideal de formação do sujeito racional e consciente; m) o ideal de transformação social é substituído pelo de inclusão social, que ocorreria pela valorização da cultura de cada grupo.
Esses pressupostos relativistas do Multiculturalismo evidenciam por si mesmos o caráter problemático desse ideário por pelos menos duas grandes razões.
A primeira delas é a incoerência entre o caráter supostamente crítico com que esse ideário se apresenta e o conformismo social que caracteriza sua atitude, já que o limites de todas as lutas sociais é dado pela negação da perspectiva de superação do modo de produção capitalista. A segunda razão pela qual esse ideário se mostra problemático é o fato de que, admitindo-se essa visão de valorização da cultura dos grupos, a desvalorização da escola e do trabalho educativo significa, no limite, a possibilidade de extinção de um grupo social de grande importância para a história do mundo moderno, o dos professores.
Esse ceticismo epistemológico acaba por ser um duro golpe na produção do conhecimento e de forma direta em sua difusão. Pois há nesse discurso, uma clara desvalorização da teoria, um “recuo na teoria” como nos afirma Moraes (2003). Isto é, essa concepção acaba por contribuir com o empobrecimento da pesquisa educacional, da formação de professores e da elaboração de currículos escolares, levando a uma pedagogia que desvaloriza o conhecimento escolar e a uma epistemologia que desvaloriza o conhecimento teórico/cientifico/acadêmico (DUARTE, 2003).
Se é negada ou posta em dúvida a possibilidade de conhecimento objetivo da realidade, é inevitável que o mesmo aconteça com a ideia de transformação dessa realidade a partir do seu conhecimento objetivo.        
É necessário que se retome aqui a ideia de mudança e transformação a partir do marxismo, pois sem transformação social radical, não se transforma, não se muda a nossa realidade de forma efetiva.
Compreendo, desse modo que o discurso que apoia a luta para a construção de uma sociedade multicultural, intercultural e híbrida, é uma maneira astuta de retirar da agenda política da esquerda a luta pela superação do modelo capitalista.


Tecendo em Reverso – Quais são hoje as tendências de estudo sobre currículo no Brasil e como estão avançando estes estudos sob a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica?

JULIA MALANCHEN – Na atualidade a grande influência no campo dos estudos sobre currículo no Brasil, advém dos fundamentos do multiculturalismo. O GT de Currículo na ANPED, os grupos de pesquisa nas universidades, os consultores do MEC, a Associação Nacional de Currículo, as revistas da área e pesquisadores, demonstram que seus fundamentos estão ancorados no discurso/pensamento multicultural/intercultural e relativista. Autores como Tomaz  Tadeu da Silva, Antonio Flávio Barbosa Moreira, Ana Canen, Sandra Mara Corazza, Alice Casimiro Lopes, Elizabeth Macedo, Nilda Alves, Alfredo Veiga Neto e Vera Candau, são alguns exemplos de autores reconhecidos na área do currículo e que têm dedicado suas pesquisas a socializar as ideias multiculturais, portanto não marxistas e por consequência não ancoradas em uma teoria que tem como objetivo final a transformação radical da sociedade.
Em relação à pedagogia Histórico-crítica, no momento que realizei minha pesquisa, não encontrei, um trabalho específico que tratasse sobre Pedagogia Histórico-Crítica e teorias curriculares, porém observei que, no conjunto de produções realizadas até aquele momento a partir desta pedagogia, era possível identificar diversos elementos que contribuíam para a conceituação de currículo escolar. Esses elementos foram encontrados tanto nas obras de Dermeval Saviani como de outros autores que têm procurado contribuir para a construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica. E foi esse caminho que segui para elaborar o quarto capítulo de meu trabalho que busca avançar no sentido de contribuir para os estudos e a discussão no campo da organização do currículo escolar a partir dos fundamentos da Pedagogia Histórico-crítica. Na sequência, Carolina Nozella Gama, também tratou em sua tese defendida em 2015 na UFBA, sobre o tema  currículo e a pedagogia histórico-crítica.


Tecendo em Reverso - Como um estudo da Cultura enviesado num aporte teórico marxista pode contribuir para a superação da visão multiculturalista posta pelo campo de pensamento hegemônico?

JULIA MALANCHEN – Então, como temos visto o conceito de cultura, na contemporaneidade, é uma temática de amplos debates, sobretudo na área das ciências humanas e, mais designadamente, no campo da antropologia. Devido à grande produção teórica sobre esse termo não se encontrar no campo marxista e devido ao fato de que a produção marxista ser censurada ou simplesmente ignorada, o debate sobre o tema da cultura a tem desvinculado da base material da sociedade, numa perspectiva fortemente idealista e anistórica e dessa forma que esta é compreendida e utilizada pelos multiculturalistas.Definir, portanto, o conceito de cultura a partir da perspectiva marxista, na atualidade, demanda um duplo esforço. Em primeiro lugar é preciso desvencilhar esse conceito de todo o lastro das confusões e artimanhas ideológicas do pós-modernismo, e portanto, multicultural e relativista. E esse trabalho de faxina é penoso porque as armadilhas do discurso pós-moderno estão fortemente impregnadas na mentalidade acadêmica contemporânea, a ponto de serem reproduzidas até por aqueles que se propõem a fazer a crítica ao pós-modernismo. Simultaneamente a essa faxina é preciso construir sobre fundamentos sólidos a teoria marxista da cultura e de sua transmissão pela educação escolar.
Meu estudo, durante a tese, direcionou-se na busca de uma definição de cultura que levou em conta a relação ser humano e natureza, ou seja, o trabalho como ação do ser humano que transforma o meio modificando-o e modificando-se e, com isso, produzindo cultura. Como Marx escreveu, o processo de desenvolvimento do ser humano é, de forma simultânea, um processo de humanização da natureza e de naturalização do gênero humano. Para compreender na tradição marxista a definição de cultura, faz-se necessário analisar como o ser humano se “humaniza”, isto é, como forma a si mesmo no processo histórico. Entretanto, a humanização tem ocorrido por meio da alienação. Isso significa que as mediações e determinações entre a cultura e a luta de classes são decisivas para compreender o processo de produção material, do qual se desdobra a produção simbólica que, na perspectiva histórica, é determinada pelas relações que os seres humanos constroem no processo de produção da própria existência. A partir das relações de produção podemos delinear o desenvolvimento cultural em sua materialidade.
É precisamente pela mediação do trabalho na relação do ser humano com a natureza, momento em que começa a produzir cultura diferenciando-se dos outros animais, que se inicia o processo de humanização, ou seja, da formação do ser humano como ser social. Quando isso acontece o ser humano dá um salto qualitativo no seu processo de evolução, dando início a uma nova esfera ontológica, a esfera da socialidade, isto é, do ser social.
Sintetizando, podemos afirmar as seguintes características da cultura numa perspectiva marxista: a) É resultado do trabalho, isto é, da ação do ser humano sobre a natureza e, portanto, define-se como cultura material; b) Juntamente com a cultura material se formam os elementos que compõem a cultura não material ou simbólica, como a linguagem, as ideias, a ciência, a filosofia e a arte; c) a ciência, a arte e a filosofia, dessa forma, são uma parte da cultura, e não podem ser confundidas como seu sinônimo; d) a apropriação da cultura é sempre um processo educativo, ou seja, é necessária a existência de mediações para que a mesma seja transmitida e apropriada no processo de humanização.
A partir das considerações feitas até aqui, podemos concluir que, numa perspectiva marxista, cultura é tudo o que o ser humano produz, desde o mais simples e elementar, até o mais complexo. Nesse sentido, é imperativo compreender a cultura como um ilimitado campo de produções humanas materiais e não materiais, tais como, os instrumentos de todo tipo, os conhecimentos, desde o mais elementares até científicos e filosóficos, as obras das artes e da literatura, as várias formas de linguagem, os hábitos e costumes, entre outros. A cultura é “atividade humana condensada” (DUARTE & MARTINS, 2013), isto é, atividades que se acumulam nos objetos produzidos pelos seres humanos. Assim, a cultura existe objetivamente como acúmulo de atividades e experiências e subjetivamente na medida em que os indivíduos se apropriam daquilo que os outros seres humanos produziram e que está acumulado.
A cultura humana deve ser universal, desse modo, não deve pertencer a uma classe ou a um grupo, pois é produzida historicamente por toda a humanidade, em suas relações e luta de classes. No capitalismo, está nas mãos da classe burguesa, mas, numa sociedade comunista, não pertencerá somente ao proletariado, mas sim a todos, pois não existirão mais classes. Nessa direção numa sociedade cindida em classes, a cultura também o é, mas, por contradição, a cultura produzida nessa sociedade, ao mesmo tempo que expressa o particular, também possui o universal. Dito de outro modo, a cultura é atravessada pelas classes, e por isso expressa de modo universal a humanidade, e é pela categoria da contradição que devemos compreender esse aspecto da cultura humana.
No campo do marxismo, a cultura é resultante e, simultaneamente, é formadora do gênero humano e, de nenhuma forma, está desarticulada da base material da existência. Porém, os multiculturalistas/relativistas culturais permanecem numa visão particular e reducionista da cultura. Os mesmos argumentam que não existe uma cultura universal, que isso é resultado de uma visão colonialista. Consideram tratar-se de uma visão opressora e impositiva da cultura branca o que impede a diversidade e tolhe a liberdade dos seres humanos. Também analisam que o processo histórico humano recebeu até aqui imposições de grupos dominantes, e que os mesmos destruíram culturas de grupos menores. Desse modo, argumentam que, quando preconizamos uma cultura universal, nossa postura é etnocêntrica.
Por outro lado, como mostra o marxismo, somente por meio da universalização da cultura material e não material poderemos chegar à verdadeira liberdade do ser humano, como resultado de grandes contradições da profunda luta de classes desenvolvida na história social.
Em meu trabalho defendo que a apropriação da herança cultural humana pela classe trabalhadora é necessária por, pelo menos, dois motivos.
O primeiro é que os trabalhadores precisam de conhecimento e condições para organizar outra sociedade, e para isso é necessário apropriar-se de tudo o que foi produzido até o momento, pois não se constrói um novo modelo social com ausência de conhecimento do que já existe. Deste modo, tomar posse da cultura produzida historicamente é condição imprescindível para a construção do socialismo. Duarte (2006, p.610) explica que: “tal processo possibilitará a constituição de uma cultura universal que supere os limites das culturas locais, incorporando toda riqueza nelas contidas e elevando essa riqueza a um nível superior”. Para Duarte (2013), essa apropriação representa um progresso em direção à humanização, ou seja, da universalização e da liberdade do homem que ocorre no capitalismo, por contradição, de forma limitada e sob o jugo alienante da sociedade burguesa.
O segundo motivo é o de que, em termos de formação humana, de acordo com Leontiev (1978) e com Martins (2013), o ser humano só desenvolve em plenitude suas funções e aptidões, ao ter acesso ao que existe de mais rico produzido em nossa sociedade na forma de cultura material e intelectual.
Desse modo, a formação de um ser humano omnilateral, e de outra sociedade superior a essa, só será possível com a apropriação da riqueza acumulada e das grandes obras produzidas pelo gênero humano. Nessa direção, mais do que nunca, é imprescindível entender como a relação com a cultura proporciona a manutenção ou a superação do modo de produção capitalista. Compreender isso é um desafio, pois o desenvolvimento cultural precisa contribuir com a emancipação humana e, desse modo, faz-se urgente confrontar as teorias que dissociam a cultura das relações de produção, pois essas, antagonicamente, afirmam seu posicionamento político, que é o de adaptar de maneira apaziguadora, ou “humanitária”, a classe trabalhadora à socialidade capitalista.



Tecendo em Reverso – Em seu trabalho lemos: “Globalização exige isto: um homem que não almeje igualdade nem na partida nem na chegada. A compreensão da sociedade dividida em classes desaparece”. Sabe-se que o horizonte do chamado “pensamento único”também está cada vez mais presente na nossa sociedade. Como você avalia este atual momento e suas consequências para a educação como um todo?


JULIA MALANCHEN – Estamos vivendo um momento crítico na educação (Lei da mordaça, projeto Escola sem partido, Base nacional Curricular comum  pautada no multiculturalismo, privatização da educação, aligeiramento e esvaziamento da educação escolar),  na política (retomada do autoritarismo, golpe contra democracia, manobras antiéticas e diversos casos de corrupção)  na economia (aumento da inflação, desemprego, cortes de subsídios, ameaça a previdência, projeto (PEC 241/2016) do governo Temer, que fixa o teto para gastos públicos  etc ) e em todas as formas de relações sociais (violência, preconceito e xenofobia).  Vejo como um momento desafiador e no qual devemos colocar nossos argumentos e fundamentos em ação. Na verdade, nos últimos 50 anos tivemos avanços  na conquista de direitos pela classe trabalhadora mesmo dentro da abrangência de um estado burguês, e agora, o capitalismo e seus defensores, estão direcionando suas ações com violência física e psicológica, no sentido de retirá-los. Os arautos do capitalismo estão em busca da diluição do pouco que sobrou de nossa luta e retirar o que conseguimos, então agora é hora realmente de resistirmos, de mostrarmos nossa força, fundamentos e organização. Agora, ou lutamos ou ficamos olhando tudo paralisados e atônitos, e perdemos tudo que gerações passadas lutaram e dedicaram sua vida para conseguir. A luta de classes claríssima está acirrada e nossa postura deve ser de combate e resistência nas salas de aula e mais do que nunca nas ruas!!

Dica de Leitura:

                                                                        Foto: Divulgação