terça-feira, 28 de junho de 2016

Imprensa, gêneros discursivos e o tempo capitalista.

No livro: A Sociedade do Espetáculo o autor Guy Debord afirma : “À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono”.
A anestesia imposta por uma mídia ainda carente de imparcialidade e muitas vezes adepta do chamado jornalismo declamatório produz cada vez mais um público de gosto mediano e ideias conservadoras.
Publicado pela Navegando Publicações o livro Imprensa, gêneros discursivos e o tempo capitalista instiga o leitor a uma reflexão sobre a mídia em tempos de capital.
Conversamos com os autores Carlos Lucena e Lurdes Lucena sobre a Navegando Publicações e  a mais recente obra lançada pela editora.
Carlos Lucena é cientista social pela Puccamp. Possui doutorado em Filosofia e História da Educação pela Unicamp e pós-doutorado em Educação pela Ufscar. Atualmente é um dos editores da Navegando Publicações e professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
Lurdes Lucena é mestre em linguística pela Unicamp e possui doutorado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. É professora nas áreas de gestão pública, comunicação e educação. A pesquisadora também faz parte do Grupo de Pesquisa: Trabalho, Educação e Formação Humana pelo Cnpq.

Confiram a entrevista:

                                                                    Foto: Arquivo pessoal do pesquisador.

    Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.


Tecendo em Reverso - Como nasceu a ideia da Navegando e a concepção de distribuição gratuita das obras (e-books)?


CARLOS LUCENA E LURDES LUCENA - A Navegando Publicações surgiu de uma discussão no interior do grupo Histedbr (História, Sociedade e Educação no Brasil) voltada à dificuldade de publicação dos membros do grupo de pesquisa de suas produções. Essas dificuldades se manifestavam principalmente em virtude do tempo para a publicação de livros e os custos para a referida publicação. Percebíamos que teses de doutorado, dissertações de mestrado e relatórios de pesquisa acabavam “esquecidas” nas bibliotecas sem a referida socialização e divulgação dos seus resultados. A “Navegando Publicações” surgiu em 2010 apenas como um espaço de divulgação de trabalhos científicos. Os autores conseguiam o ISBN para a publicação de suas obras através de suas instituições de origem ou de forma autônoma na Biblioteca Nacional. Algumas obras conseguiram o ISBN pela Faculdade de Educação da Unicamp. Por volta de 2012, a “Navegando Publicações” passou a produzir em parceria com outras editoras. No ano de 2016, a “Navegando Publicações” conseguiu seu próprio CNPJ e o cadastro na Biblioteca Nacional. Com isso conseguimos rapidamente viabilizar um conjunto de produções de alto nível de diferentes pesquisadores brasileiros e do exterior. Apesar da sua transformação em empresa privada, mantemos o princípio de produção de e-books gratuitos, mantendo a essência da “Navegando Publicações” como espaço de socialização do conhecimento. Os custos de publicação para os autores são referentes ao processo de produção do e-book, tais quais, capa, revisão, editoração, diagramação etc. Trabalhamos para em breve disponibilizar aos autores a produção de livro impresso por demanda. O que percebemos com a disponibilização de e-books gratuitos é o elevado número de acessos no exterior, merecendo destaque, Estados Unidos, França e Rússia.


Tecendo em Reverso - Dentre os lançamentos de editora encontra-se: Imprensa, gêneros discursivos e o tempo capitalista. Em que medida a obra contempla as discussões da mídia orientada pelo mercado?


CARLOS LUCENA E LURDES LUCENA - Nossa intenção ao desenvolver este livro foi demonstrar a historicidade da imprensa em suas mediações com a sociedade e o mercado capitalista. O comparativo entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX objetivou demonstrar o contínuo processo de aceleração do tempo da sociedade capitalista manifesta naquilo que bem exemplificou David Harvey, da tese da compressão entre o espaço e o tempo. Entendemos que o mercado nada tem de sobrenatural e inexplicável. O mercado é uma construção humana e histórica acirrado pelo nível de conflitos e lutas de classes em seu tempo. Ao fazermos esta afirmação, tomamos como referência que tanto a mídia como a sociedade são expressões sociais dinâmicas que se chocam, contradizem e se reproduzem no seu tempo. Isso implica perceber que ambos não são neutros, mas sim traduzem as aspirações do seu período histórico.


Tecendo em Reverso - No capítulo 2 da obra você e Lurdes discorrem sobre as crises do modo de produção capitalista. Quais são as principais crises enfrentadas hoje pela imprensa brasileira?


CARLOS LUCENA E LURDES LUCENA - Em nosso entendimento as crises cíclicas do capitalismo são elementos fundamentais para a interpretação da dinâmica da sociedade em que vivemos. O entendimento de Marx ao qual toda em vez em que a humanidade revoluciona suas formas de produzir, também revoluciona as formas de viver, perceber e sentir norteia toda a nossa interpretação. Logo, o entendimento de uma crise cíclica impacta na interpretação de um conjunto de relações que transcendem os movimentos da economia tanto em âmbito local, como regional, nacional e internacional.  A imprensa é o espaço da contradição absoluta. Nela se expressam as diferentes concepções de sociedade existentes em seu tempo. Ela é a negação absoluta da neutralidade e a expressão da intencionalidade. A humanidade não se manifesta sobre qualquer assunto sem intencionalidade. Ela sempre quer chegar há algum lugar. A imprensa brasileira está em crise porque a sociedade brasileira também o está. Os períodos de vazio político tal qual vivenciamos atualmente é um grande risco para o futuro da própria liberdade de imprensa e da democracia brasileira. Infelizmente, correndo o risco que nossa interpretação possa cair na armadilha do determinisno histórico, os períodos que se seguiram ao bonapartismo político foram compostos em várias oportunidades pela construção de ditaduras civis e militares. Esperamos que o Brasil não siga para este caminho...


Tecendo em Reverso - Como as propagandas notadamente de cunho ideológico, muitas vezes conservador coadunam-se com os ditames do capital?


CARLOS LUCENA E LURDES LUCENA - O entendimento da inexistência da neutralidade da propaganda é fundamental para interpretá-la. A propaganda é a expressão científica elaborada do fetichismo da mercadoria em larga escala. A sociedade capitalista marcou uma forma societal produtiva à qual tudo deveria ser vendido, aquilo que denominamos como coisificação do ser social. Marx e Engels, ainda no século XIX, perceberam o movimento em curso que estava presente na sociedade capitalista. O entendimento ao qual pelo “trabalho”, categoria fundamental expressa pela mediação da humanidade com a natureza, a diferenciava dos animais, foi condição essencial para uma profunda crítica dos rumos sociais tomados pela sociedade. A propaganda, dentro desta perspectiva foi a forma mais elaborada para garantir o predomínio do valor de troca sobre o valor de uso das mercadorias. Ela representou a expressão maior de uma luta pela conquista das mentes e da subjetividade de consumidores através da construção artificial e ilusória da felicidade como sinônimo de poder de consumo. Nessa relação fetichizada, a propaganda contribuiu para que as mercadorias adquirissem vida própria, transformando-se em uma abstração à própria humanidade. Padrões de beleza, felicidade, consumo foram difundidos em âmbito internacional, complexificados pela Terceira Revolução Tecnológica, algo que nos arriscamos a denominar como o novo eurocentrismo informático. Parece-nos que ainda está em aberto a grande questão referente ao presente e ao futuro da humanidade: o consumismo propagandístico eleva a felicidade das pessoas? Acreditamos que não.


Tecendo em Reverso -No livro vocês analisam a linguagem utilizada em alguns classificados do século XIX em que negros à época da escravidão eram vendidos e trocados com muita naturalidade pela imprensa escrita. Como as pessoas são hoje “vendidas” nos classificados?


CARLOS LUCENA E LURDES LUCENA - A historicidade é fundamental para a interpretação dos processos sociais do seu tempo. Quando analisamos o comparativo entre os dois séculos, vemos que questões vergonhosas como a escravização de um ser humano por outro são tratadas com naturalidade pela imprensa escrita. Uma análise cuidadosa desses classificados demonstra que os “Senhores de Escravos” sequer sabiam a idade dos escravos. Da mesma forma, demonstra também a fuga como a luta e resistência dos escravos contra uma situação humilhante e desumana, algo que nos arriscamos a dizer como uma vergonha da humanidade. O que se percebe na leitura e interpretação desses classificados é  a naturalização da escravidão sustentada pelas ideologias e a Constituição Brasileira. Tanto ó é que em vários classificados a recompensa era prometida quando aqueles escravos que fossem capturados fossem entregues nas cadeias da cidade de Campinas e região. A fuga era entendida como uma espécie de crime em seu tempo. A escravidão era legalizada não só no Brasil como em diversos países no exterior que a adotaram. Marx contribui com essa questão ao afirmar que as Leis nunca foram neutras, mas sim a expressão da luta e da hegemonia de classes em um período histórico. Em debate com Hegel demonstrou que as Leis, tal qual o Estado, não eram sobrenaturais, mas sim construção humana que imputavam a dominação de uma classe social sobre outra. Elas também carregam em seu interior o caráter de mediação de classe. Quanto maior o nível de lutas de classe no seu tempo, maior a construção de Leis que visem manter a sociedade sob controle. Os classificados de jornal sobre a escravidão nesse período tinham essa prerrogativa. A região da Campinas era tida como uma das mais violentas e algozes com os escravos em todo o Brasil. Mesmo com o fim da escravidão, esse traço se manteve presente na região. Quase setenta anos após a abolição da escravatura, existiam clubes na cidade que não aceitavam negros entre os seus associados. Somou-se a essa questão a luta pelos postos de trabalho entre os trabalhadores negros e os imigrantes. Muitos imigrantes intensificaram a discriminação dos trabalhadores libertos negros como estratégia para garantir os seus próprios postos de trabalho nas lavouras da região.
A naturalização dessas relações foi constante no meio midiático. Apesar de no interior da imprensa existir espaços de resistência e contradição, o que se percebe é a predominância da difusão contínua de valores de mundo de uma sociedade mundializada, cuja eficiência e relevância se encontram no hemisfério norte do planeta. Ocorre em âmbito internacional aquilo que denominados como espetáculo da mídia que paralisa os expectadores dada a força e impacto das imagens. As imagens são apresentadas como desprovidas de história e sentido. A negação da história apresenta o mundo como se fosse apenas o presente, quando na realidade ele não o é. O espetáculo da mídia ao mesmo tempo em que horroriza no presente provoca o esquecimento minutos após. O que se visa é a construção de um mundo caótico e sem alternativa, cuja saída se apresenta com o discernimento do autoritarismo em escala internacional.  A construção linguística simples acompanhada da elaboração de gêneros discursivos também simples transmite a sensação de uma compreensão neutra do mundo a sua volta, quando na realidade, o ser social cada vez mais se estranha de sua própria condição de existência.
O nível de estranhamento e alienação é tão intenso na sociedade que o ser social tem dificuldade em compreender quem ele mesmo o é. Aceita como natural um conjunto de condições que são humanas por excelência. Tem a sensação de ser livre e manipulado quando na realidade está preso em um conjunto de relações que sequer tem compreensão que existem. Pensam ser livres enquanto se encontram escravos das fronteiras de dominação social. Infelizmente, parcela considerável da mídia e da propaganda contribui significativamente para que esse processo continue, atentando, de forma significativa, para o empobrecimento brutal dos seres humanos.