Na introdução de As Veias Abertas Da América Latina o
escritor Eduardo Galeano faz o seguinte apontamento: “ É a América Latina, a
região das veias abertas. Desde o descobrimento até os nossos dias, tudo se
transformou em capital europeu ou , mais tarde, norte-americano, e como tal
tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder”.
E é nesse banho de sangue que vamos resistindo aos sucessivos
golpes durante uma história que acumula exploração e luta.
Elas dizem não!
Mulheres camponesas e a resistência aos cultivos transgênicos é o mais recente trabalho da
pesquisadora Márcia Tait Lima. O livro publicado pela editora Librum mostra o enfrentamento das
mulheres camponesas na América Latina contra o cultivo de transgênicos.
Doutora
em Política Científica e Tecnológica (DPCT/Unicamp) Márcia também é comunicadora Social formada pela Universidade
Estadual Paulista Unesp com especialização em Jornalismo Científico pelo
Labjor/Unicamp. Cursou o mestrado em Política Científica e Tecnológica (DPCT/Unicamp)
e outras especializações entre os anos de 2008-2014, entre as quais: Teoria
Feminista pela Universidade Complutense de Madri, Tecnologia Social e Economia
Solidária (Unicamp).
Conversamos com a pesquisadora sobre seu
livro:
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo em Reverso – O trabalho “Elas dizem não! Mulheres
camponesas e a resistência aos cultivos transgênicos” se deu sob quais
circunstâncias no que se refere às expectativas da pesquisadora Márcia Tait?
MÁRCIA TAIT LIMA – As questões de pesquisa que deram origem
ao trabalho de doutorado e ao livro Elas dizem não! Mulheres camponesas e a
resistência aos cultivos transgênicos foram sendo formuladas ainda
durante a pesquisa de mestrado (também publicada em livro, Editora Annablume,
2011 http://folhashop.folha.uol.com.br/tecnociencia-e-cientistas-cientificismo-e-controversias-na-politica-de-biosseguranca-brasileira-marcia-maria-tait-lima-8539103273.html#rmcl)
quando me aprofundei no universo dos conflitos sobre as políticas e
regulamentações envolvendo os cultivos transgênicos no Brasil. Essa pesquisa voltou-se
a analisar a participação de pesquisadores brasileiros na formulação das
políticas de biossegurança e seus discursos sobre os transgênicos. Já no final
deste trabalho indico a necessidade de se ampliar e“politizar” o entendimento
do discurso tecnocientífico relacionado aos transgênicos. Ao longo do trabalho
são colocadas algumas formas de desqualificações dos discursos críticos aos
cultivos transgênicos dentro e fora da academia e a falta de participação de
determinados grupos, como os movimentos sociais nas decisões políticas sobre
liberação e risco. Assim, de certo modo, apesar de pesquisas bem diferentes do
ponto de vista de autores mobilizados e metodologia, o estudo e o livro
anterior e o atual sobre as ações coletivas de mulheres camponesas contra
transgênicos são complementares e surgem de um mesmo interesse de pesquisa de
propor uma leitura crítica da tecnociência e das novas biotecnologias e os
cultivos transgênicos, trabalhando com discursos, epistemologias e práticas
contra-hegemônicas e que sofreram ataques constantes e desqualificação que
imputaram um local de não racionalidade e marginalidade aos discursos críticos.
Tecendo em Reverso – No seu livro há uma crítica ao processo
de privatização dos sistemas agroalimentares. Como se dá o enfrentamento das
camponesas em relação a tal situação? Tratando-se de abordagens mobilizadoras. Em
que circunstância ocorre a atuação das mulheres nos movimentos sociais da
América Latina?
MÁRCIA TAIT LIMA – Nos países em desenvolvimento,
principalmente na América Latina, América Central e Índia, as mulheres
camponesas ou trabalhadoras e agricultoras ocupam uma posição de destaque na
produção de alimentos para subsistência de suas famílias e também de suas
comunidades e também na preservação dos bens comuns (biodiversidade, solo,
água). A produção voltada para o comércio, agricultura para venda (commodities) segue uma lógica distinta
da lógica de produção da agricultura para consumo direto, familiar e local/regional
(alimentos em natura e pouco processados). Neste segundo tipo de agricultura,
as mulheres têm contribuído fortemente, embora homens e mulheres participem de
ambas as formas de trabalho rural e da produção de alimentos e, portanto, façam
parte dos sistemas agroalimentares. O que discuto no livro é justamente como as
mulheres vêm atuando na prática da resistência à homogeneização e à privatização
das culturas alimentares e sistemas alimentares. No Brasil e Argentina esta
resistência se dá pela prática familiar da agricultura camponesa, mas também na
associação em movimentos sociais, organizações e cooperativas mistas e
exclusivas de mulheres, que quando atuam coletivamente colocam questões
diversas como: a própria produção e prioridade da alimentação familiar, local,
diversa e livre de contaminações; as desigualdades e violência de gênero
persistentes no universo rural; os impactos da monocultura e privatização de
sementes para as famílias camponesas e produção de alimentos, entres outras.
Esta mobilização/articulação de mulheres em movimentos de trabalhadoras rurais
e camponesas não é recente, remonta ao final da década de 70 e início de 80 e
aos movimentos por direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e
processos de redemocratização nos diversos países da América Latina. Porém,
durante os finais dos anos 90 primeira década de 2000 os movimentos de mulheres
foram crescendo em protagonismo na luta por soberania alimentar e contra os
cultivos e sementes geneticamente modificadas.
Tecendo em Reverso – Tratando-se de abordagens mobilizadoras.
O que une e separa as camponesas brasileiras e argentinas no que diz respeito
aos temas relativos à produção de alimentos?
MÁRCIA TAIT LIMA – Na minha pesquisa e livro busco destacar
principalmente as convergências entre as questões, discursos e as ações dos
movimentos e grupos de mulheres no Brasil e Argentina. Porque acredito que as
convergências são mais significativas que as distinções. Em várias oportunidades
de leituras e participação em eventos em outros países, como Bolívia e Equador,
também notei mais semelhanças que diferenças, sem desconsiderar, claro, que
existem diferenças culturais e de contexto sociopolítico, por exemplo, na
Bolívia e Equador a questão camponesa está muito mais vinculada à questão
indígena. Neste sentido mais de refletir a partir das convergências e o que
aproxima os movimentos de mulheres e participação de mulheres em movimentos e
organizações no Brasil e Argentina, poderia destacar: uma forte crítica à
mercantilização da agricultura ou ao modus
operandi da agricultura industrial e aos impactos negativos para as
famílias de pequenos agricultores e para as finalidades e formas e produção de
alimentos; uma crítica à diminuição da autonomia, empobrecimento e a crescente
dependência de insumos químicos e agrotóxicos na agricultura familiar e
camponesa; expulsão do campo e diminuição das pequenas áreas de produção
agrícola e cultivos voltados para alimentação em suas regiões e países e não
para exportação; crescente empobrecimento e piora das condições de vida das
mulheres e famílias camponesas; a agricultura para o alimento e o alimento como
medicamento. Essa aproximação na crítica também dialoga com formas de
resistência e propostas semelhantes, como feiras de trocas de sementes
crioulas, feiras de produtos da agricultura familiar a agroecológica,
cooperativas e pequenas associações que trabalham com beneficiamento de
alimentos (pães, doces, geleias, chás, frutos secos) e artesanato; formação e
solidariedade entre mulheres sobre gênero e feminismo, direitos reprodutivos e
saúde, etc.
Tecendo em Reverso – No atual momento político em que
infelizmente a mídia irresponsavelmente lança no país ódio e preconceito em
relação às mulheres envolvidas na política. Qual reflexão você apontaria para a
discussão sobre gênero e consciência de classe?
MÁRCIA TAIT LIMA – Quando lemos ou conversamos com mulheres
que participaram nos processos de lutas das classes populares e da esquerda no
Brasil e América Latina notamos uma importante similaridade: a formação de movimentos
autônomos de mulheres motivadas por um desrespeito à participação política feminina
e desconsideração de suas demandas e da própria importância das questões envolvendo
a desigualdade de gênero. Existem várias colocações sobre das mulheres militantes
sobre como o tema de gênero era referido como sendo uma “lutinha” ou “luta
menor” dentro dos movimentos e partidos de esquerda, ou ainda que, primeiro se deveria
preocupar com as questões de classe e a superação do capitalismo para depois ou
mesmo de forma natural se dissolverem as questões feministas.
No passado e no presente, não apenas nos movimentos de
direita, mas também dentro de grupo de esquerda e “progressistas” ainda não
existe um entendimento partilhado (pelo menos não de forma majoritária) de que
capitalismo e patriarcado são duas faces da mesma moeda, que devem, portanto,
ser combatidos juntos - não é possível, honesto e/ou realista o estabelecimento
de prioridades. Não reconhecer a exploração e subvalorização do trabalho
socialmente designado às mulheres ou feminino - desde trabalho doméstico e de
cuidado familiar até nas carreiras ocupadas mais amplamente por mulheres, como
na educação, saúde, serviço social - como parte da “luta de classes” é uma
“contradição ainda não superada” nas esquerdas, nos meios políticos e em muitas
políticas públicas. Esta impossibilidade de separação se mostra bastante clara,
por exemplo, numa leitura feminista do aclamado filme “Que horas ela volta”,
onde se escancara a exploração de classes, mas também uma exploração de
“interseccional” que envolve gênero e raça/etnia, um tipo de
desigualdade/discriminação tão conhecida quanto persistentemente “apagada” pela
sociedade brasileira: da mulher, pobre e nordestina. São muitas relações possíveis
de serem estabelecidas a partir deste filme do ponto de vista feminista, dentre
elas, o “ciclo de exploração” das tarefas domésticas e de cuidado que afetam
mulheres de todas as classes (faltam políticas públicas e abordagens sociais
sérias sobre quem cuida e como das crianças, adolescentes, idosos, doentes), mas
principalmente, às mulheres trabalhadoras das classes populares, que não educam
e cuidam de seus filhos para cuidarem dos filhos da classe média e alta e
“serem quase como parte da família” de outras famílias que não as suas.
De positivo, este contexto recente também aponta justamente
para o chamado de “re-florescimento” do feminismo na última década. As mulheres
cada vez mais se mobilizam em distintos movimentos feministas, com ênfase em
temas diferentes (livre exercício da sexualidade; humanização do parto e
medicalização feminina; assédio e machismo nos espaços de trabalho e públicos;
desigualdades no trabalho; maior espaço na política etc.), mas todos têm como
base a não aceitação da desigualdade, exploração e violência de gênero e, diria
também, um “re-florescimento” de uma “sororidade” ou sentido de empatia e união
entre mulheres e, porque não dizer, entre mulheres e homens que também defendem
as causas feministas.
Não se pode deixar de notar que muitas manifestações reagem a
acontecimentos que reforçam traços de uma sociedade ainda machista e sexista (como
coloca em sua pergunta), mas estas reações antes não eram tão vocalizadas ou
visíveis e agora são! Não acredito que antes já vivemos períodos melhores em
relação ao machismo e sexismo, muito pelo contrário, mas agora isto se
escancara e são vistas as rebeldias e resistência, o Não! das mulheres (e
homens) como o das camponesas deste livro.
E também vemos claramente o inconformismo, por vezes expresso em reações
violentas de homens e também mulheres que não aceitam a igualdade e liberdade
para os gêneros e os seres humanos. A “viralização” de posts de
resistência/reação a partir da reportagem publicada pela revista Veja “Bela,
recatada e do lar”, referente à Marcela Temer, mulher do vice-presidente da
república, ilustra bem este espaço de conflito sempre latente e agora cada vez
mais escancarado entre setores, grupos, pessoas conservadoras e machistas, que
querem impor um modelo de mulher e feminino, e outros inúmeros lados,
transbordando e resistindo, centenas, milhares de mulheres reais que não
aceitam esta imposição. Como dizem as
mulheres camponesas nos chamados a “companherada”: Lutar! Quando? Todos os dias! Quando mesmo? Todos os dias! (e na
toada da Marcha Mundial das Mulheres) – Seguiremos
em marcha até que todas sejamos livres!
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