Nos
arredores do Capitólio as meninas cantam pelas ruas. Ouvimos também os sons confusos
de idiomas inimagináveis.Nas praças os chamados “ricachones” europeus alugam os
carros antigos para passearem por Havana. Muitos vão à ilha, mas poucos a
conhecem com profundidade.
“Nuestra
América” tão bem definida por José Martí abriga um país de lutas implacáveis
contra o imperialismo.
No
último dia 27 de março, após a visita do presidente Barack Obama à Cuba,
reafirmando um processo de reabertura política, o líder Fidel Castro assinalou
em seu artigo El Hermano Obama publicado no jornal Granma:
“Ninguém acalente a ilusão de que o povo deste
nobre e abnegado país renunciará à glória e os direitos e à riqueza espiritual
que ganhou com o desenvolvimento da educação, a ciência e a cultura”.
Fidel está coberto de razão. A educação cubana
encontra-se entre as melhores do mundo.
A professora da Universidade Católica de Santos
(SP): Maria do Carmo Leite tem dedicado suas pesquisas acadêmicas ao processo
educativo em Cuba. Ao longo dos anos viajou muitas vezes até Havana para
solidificar um amplo estudo interessado neste modelo que chama atenção pelas
iniciativas bem sucedidas.
Confiram a
entrevista:
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo em
Reverso - José Martí é uma grande referência intelectual para o povo cubano. De
que forma a obra deste pensador influencia ainda hoje a educação em Cuba?
MARIA LEITE - O ideário pedagógico de Martí ainda provoca
aguçadas reflexões sobre a formação de todos os valores societários da ilha.
Acredito que a Ilha nunca poderá abandonar o pensamento martiano. A pedagogia cubana, por mais breve e conciso seu estudo, não pode ser
escrita sem referência ao extraordinário papel desempenhado pelo “apóstolo”
nacional de Cuba.
Martí foi um
homem de firmeza na expressão, de consciência anticolonialista e um alto sentido
de solidariedade humana. O jornalismo, conjugado com a intensa atividade
política, ocupou grande parte de suas atividades. Como professor, Martí ganhou
a vida nas fases mais difíceis, mas não foi pedagogo no sentido estrito do
termo, pois sua profissão foi a de advogado, ainda que licenciado em Filosofia
e Letras. Apesar do restrito tempo, em seus 42 anos de vida, dedicados ao
exercício da docência, os temas educacionais ocupam significativo espaço no
conjunto da obra de Martí. O fato do ideário
ético-político martiano, impregnado de humanismo pedagógico, privilegiar os
valores tornou-se evidente, a partir 1889, quando da publicação da La Edad de
Oro, revista voltada para crianças do continente latino-americano ameaçadas pela progressiva perda de sua
identidade cultural. Na concepção de Martí, era um fato grave a Educação
latino-americana seguir os padrões ou modelos dos sistemas europeus e norte-americanos,
desvinculados das realidades socioeconômicas em que se aplicavam. A tradição
pedagógica vinculada aos próceres da independência, não apenas de Martí, mas de
Félix Varela, Enrique Varona e muitos outros, contribui para uma concepção
relativamente autônoma da educação na ilha, com claros reflexos no cotidiano
das escolas. Na ordem política, as diferentes etapas da revolução educacional,
que se iniciou após 1959, valorizam um legado pedagógico autóctone, o qual
contribuiu para a revindicação do trabalho docente em Cuba em um contexto distinto
dos postulados neoliberais, oposto do mundo do trabalho que vem do “modelo de
competências”, com todas as contradições e o fatalismo de disputas competitivas
que ele suscita e, consequentemente, a
constatação de que ser competente representa, também, saber transgredir e até
corromper.
Tecendo em
Reverso - Como o sistema educacional cubano agrega escola, família e
organizações sociais?
MARIA LEITE - A
importância destinada aos conselhos de direção, de escola e de grado e a forma sistemática como eles
atuam constituem um avanço nos projetos da escola cubana. Uma das ponderações
relacionadas ao que Zeichner chama ilusão da reflexão é a insistência em que os
professores podem pensar sozinhos sobre seu trabalho. Uma grande parte do
discurso sobre o ensino reflexivo faz pouco sentido, pois fala-se pouco da
reflexão enquanto prática social, através da qual grupos de professores podem
apoiar e sustentar o crescimento uns dos outros. De
acordo com os Informe de Seguimiento de la Educación para Todos en
el Mundo da Unesco um dos pontos fortes da educação em Cuba é o mecanismo
para compartir experiências. Concordo com tais conclusões, na medida em que os
debates promovidos nos coletivos das escolas e nos órgãos de direção, contam com o envolvimento significativo dos
atores do processo, mobilizados em razão da urgência e da extensão dos
problemas. No modelo projetado para a escola em Cuba, as relações entre os
estudantes, os coletivos de pioneiros, os claustros, as organizações de massas,
o conselho de escola e a comunidade devem contribuir para formar nos alunos uma
cultura de diálogo e debate, que favoreça atitudes positivas a respeito das
relações interpessoais e das tarefas revolucionárias das novas gerações, como
se espera numa democracia participativa.
O conselho de direção é composto pelo diretor, secretário docente,
chefes de grado, guia base,
secretários do núcleo do partido, comitê de base da União de Jovens Comunistas,
seção sindical, presidente de conselho de pioneiros, representante da Federação
dos Estudantes Universitários, médico escolar, subdiretor docente,
administrador e subdiretor do internato e de produção, quando houver. A frequência
de reunião desse conselho é mensal, com a função de elaborar o diagnóstico
integral da escola e da comunidade, promover o trabalho político e ideológico,
avaliar o cumprimento dos fins e objetivos de cada etapa do curso escolar,
adotar estratégias elegendo prioridades como critério, determinar causas e
responsáveis por problemas, elaborar os objetivos de trabalho para cada etapa,
planejar o trabalho docente, preparar as atividades diferenciadas para atender
aos professores e alunos, planificar treinamentos metodológicos conjuntos e inspeções, programar os temas de
discussão no conselho técnico, no claustro e no conselho de escola e,
finalmente, atender e estimular seus quadros de trabalhadores.
O conselho técnico é
presidido e dirigido pelo diretor da escola em integração com os chefes de grado, secretário docente, guia base e
bibliotecária. Nesse conselho, concretiza-se o planejamento das ações
preparadas pelo conselho de direção. Sua frequência é mensal, com as funções de
planificar e desenvolver atividades metodológicas para cada grado em razão das necessidades do
coletivo pedagógico, preparar estratégias com base no diagnóstico e prognóstico
de desenvolvimento dos alunos, analisar os resultados das inspeções realizadas
durante a etapa, coordenar e aprovar as práticas de laboratórios concebidas no
planejamento do processo educativo e no trabalho da biblioteca escolar, por em
prática os métodos propostos nas atividades e analisar os resultados da
avaliação do desenvolvimento do processo docente.
O conselho de grado é dirigido pelo chefe de grado e integrado por todos os
professores, os trabalhadores sociais e os instrutores de arte. Nessa instância
são controladas as ações político-ideológicas e o desenvolvimento do processo
pedagógico dos grados. Os encontros são semanais, com duração de
quatro horas. Suas funções são discutir o processo de entrega pedagógica e o
aperfeiçoamento do expediente acumulativo do escolar, definir as estratégias de
atenção à diversidade entre os alunos, elaborar os projetos de cunho
metodológico, analisar o cumprimento dos objetivos de cada grado, propor meios para alcançar a interdisciplinaridade, projetar
as linhas de trabalho científico (investigação e comunicação de resultados),
coordenar os eventos da escola, viabilizar ações de entrosamento entre
professores, bibliotecários, técnicos de laboratório e oficinas, ponderar sobre
os resultados da avaliação do pessoal docente e, finalmente, planejar
estratégias de atividades com as famílias e com a comunidade.
O conselho de escola
constitui a esfera encarregada de promover a participação efetiva da família.
Esse órgão deve elaborar projetos educativos, bem como acompanhar sua execução.
Os encontros são mensais e suas funções são incentivar os pais a integrar múltiplas atividades promovidas pela escola,
analisar a evolução dos alunos com dificuldades, incorporar a comunidade ao
trabalho de prevenção com menores que apresentam problemas de disciplina e
aqueles que provêm de lares em desvantagem social ou situação de risco,
favorecer o desenvolvimento psicológico e a saúde da família mediante a escola
de pais, organizando palestras, debates e outras modalidades de orientação,
contribuir no desenvolvimento do currículo escolar, além de valorar as opções
pertinentes à continuidade de estudos dos alunos.
O claustro é a instância presidida pelo diretor, com a participação
de todos os professores do centro, mais os convidados representantes das
organizações, incluindo as estudantis. Os encontros desenrolam-se três vezes,
no mínimo, em um ano. Suas funções são analisar os resultados dos indicadores
de eficiência do centro e sua comparação com iguais etapas de outros cursos,
discutir coletivamente as estratégias que propiciem o sucesso das aspirações
educativas na escola.
Tecendo em Reverso - Em quais circunstâncias
deu-se seu percurso metodológico em relação aos estudos sobre a escola
secundária cubana?
MARIA LEITE - A principal
pesquisa de campo que realizei na Ilha, como aluna do mestrado em Educação,
entre 2003 e 2006, objetivou investigar o processo de formação do professor
generalista integral – o PGI – na educação secundária básica em Cuba, destinada
aos alunos, entre 12 e 14 anos, dos 7°, 8° e 9° grados, dentro do projeto em curso no sistema cubano de ensino, a
partir do ano de 2001. A
investigação buscou repensar, cada vez mais, que o locus de discussão dos saberes constituintes da docência e das
especificidades da ação educativa a ser privilegiado é a própria escola, além
de contribuir para o entendimento de novos vínculos entre o trabalho e a
educação. As reflexões apresentadas ponderaram sobre a gama de possibilidades
decorrentes do ato de deslocar a formação de professores da universidade para
as salas de aula da educação básica. As causas que induziram as mudanças foram
desencadeadas no momento histórico, o “Período Especial”, encetado em Cuba no
ano de 1991, com a queda dos regimes socialistas no Leste Europeu. Até hoje, em
2016, as transformações no campo político-social na Ilha ainda estão
influenciadas por inúmeros fatos recentes, sem um contexto sedimentado que
permita alusões conclusivas.
Meu primeiro contato com o Sistema Nacional de Ensino em Cuba reporta-se
à década de 80, quando visitei as Cidades Escolares “Libertad”, em Havana, e
“26 de Julio”, em
Santiago. A participação em inúmeros eventos educacionais
realizados na Ilha, em diversas províncias do país, propiciou-me o
fortalecimento de elos com a educação cubana e o adentrar à compreensão das
situações vivenciadas na ilha. Da frequência aos institutos superiores
pedagógicos – os ISPs – e às escolas extraí significativos elementos.
Entretanto, o contato com os maestros,
as famílias e as organizações de massa, em diversas viagens de retorno a esse
país, possibilitou-me formular caminhos para a construção de uma postura
crítica em relação aos processos educacionais, tanto em Cuba como no Brasil. O
percurso metodológico fundamentou-se em uma abordagem qualitativa do tipo
etnográfico. O início da análise documental alicerçou-se em relatórios
científicos, elaborados pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas de Cuba.
Tecendo em
Reverso - Nos debates mundiais sobre educação, vemos em Cuba uma espécie de
paradigma positivo para os outros países. O que diferencia esta orientação
educativa das demais?
MARIA LEITE - Acredito
que o maior diferencial em relação a distintas reformas, realizadas em outros
países, é a constância nos investimentos e a forte determinação política que o
Estado imprime à educação. A formação
do professor como militante político tem requerido, além dos saberes docentes,
o preparo na qualidade de transmissor dos princípios basilares da Revolução. O professor é visto pela sociedade como um soldado da independência
política e econômica do país.
O que me parece significativo na experiência em Cuba é a preocupação com
o envolvimento dos especialistas das universidades pedagógicas no plano metodológico
e teórico, e a sua inserção na dinâmica diária dos centros educativos. Outra
questão considerável é o cuidado em derrubar as fronteiras em torno das
pesquisas realizadas, que devem apresentar uma linguagem direta e compreensível
aos maestros em formação,
principalmente em seus itens conclusivos, nos quais se arrolam as recomendações
decorrentes dos estudos realizados, evitando academicismos exagerados e
desnecessários. A preocupação com a
pessoa do maestro é indissolúvel nas
políticas de melhoria das escolas como espaços concretos.
A ambiguidade das reformas em curso no mundo é sintetizada pela tensão
entre o “barato” e o “melhor”, na qual a lógica do mercado, em muitos casos é a
única levada em consideração. Creio existir um consenso que não se faz boa
educação e nenhum país pode oferecer aos seus cidadãos serviços sociais
razoáveis sem uma opção clara pela garantia dos investimentos que permitam a
sua oferta pública. Cuba situa-se no
grupo de alto rendimento, apresentando elevado índice para o produto nacional
bruto, aplicado na educação, juntamente com a Finlândia, país industrializado
com um sistema educativo de sólida tradição.
Tecendo em
Reverso - No que diz respeito à formação do professor, também encontram-se por
estas terras dificuldades imensas oriundas, principalmente de planos advindos
dos governos que vão mudando ao sabor de cada nova gestão e, sempre coadunados
aos ditames internacionais. Como se dá a formação dos docentes em Cuba e, em
que ela se diferencia da formação dos professores brasileiros?
MARIA LEITE - O processo educativo em Cuba não pode ser entendido sem o vínculo
com as empreitadas históricas, que cunharam um imaginário de vertentes relativo
às lutas de liberação, desde a época colonial. O caráter cubano emergiu de uma “cultura
de resistência”, consolidada nas lutas, ao longo de trinta anos do século XIX,
nas quais pereceram quatrocentos mil cubanos, ou seja, cerca de um terço da
população da ilha na época. A Campanha Nacional de Alfabetização de 1961
conjurou dialeticamente fatores sociais que permaneceram dispersos durante a
primeira metade do século passado, contribuindo para que o fazer educativo
assumisse uma dimensão político-social e o ensino fosse convertido em
instrumento de uma cultura participativa, motivador de constantes reflexões
acerca dos problemas de Cuba e dos de âmbito internacional, que tendem a afetar
a vida do país.
A visão retrospectiva da formação
docente em caráter emergencial, nos diferentes contextos que evoluem imbricados
ao processo político-social do país, afasta as transformações projetadas para a
escola cubana do perfil das mudanças com base em formulações que partem do
zero, sem recuperar a experiência e as pesquisas disponíveis, desconsiderando
as condições reais e específicas de implementação. Ao movimento global, pautado
pela inauguração de novos projetos a cada gestão, que muitos denominam “onda
reformista”, pode ser debitado o desperdício de importantes recursos, uma vez
que a descontinuidade ignora o esforço empreendido pelos coletivos escolares, o
levantamento de dados e a análise de relações do saber historicamente
construído. Muitas das reformas pretendidas não chegam às salas de aula ou não
alteram em profundidade as suas práticas cotidianas. As chamadas inovações são
introduzidas, sem uma avaliação dos erros e avanços das lições que poderiam ser
extraídas dos programas que “caíram da moda”. Sem visão
retrospectiva os modelos procuram soluções rápidas e que não armazenem
dividendos para governos com mandatos já concluídos. As reformas movem-se no
imediatismo, sem sobrevida garantida em futuras administrações.
No Brasil, do ponto
de vista do professor, os ciclos e a sistemática de promoção dos alunos apareceram
como forma de uma espécie de retirada de seu poder e um acuamento do controle
sobre o processo de trabalho. Dessa forma, prolifera até hoje, em minha
opinião, a ideia de que professor já não tem que se preocupar com os resultados
de aprendizagem dos alunos, pois o sistema quer que ele “empurre o aluno para
frente a qualquer custo”. Essa é uma face oposta ao que ocorre na escola
cubana. Dessa maneira, ocorre no Brasil
uma espécie de desresponsabilização pelo
processo de ensino.
Entretanto em
meio aos caminhos que tem sido construídos e às soluções propostas no modelo em
Cuba, existem dilemas e tensões difíceis de resolver, inscritos na problemática
geral do país, sobretudo no conflito entre a lógica da emancipação e da
regulação. A possibilidade de participação na tomada de decisões ainda gera
fortes barreiras nos professores, no pessoal de direção e nos próprios
estudantes. A resistência a muitas mudanças que ocorrem atualmente não é mais
que uma expressão do temor e da insegurança que podem experimentar as pessoas
diante da autonomia para a qual não estão suficientemente preparadas,
habituadas, por longos anos, a formas de trabalho que asfixiavam suas
potencialidades para a criação e a inovação pedagógica.
Contudo, as
experiências educativas são próprias de cada lugar e não é um processo simples
transferir inovações. Quero salientar o aspecto fundamental propício à Educação
cubana – as raízes de reflexão dialética fincadas nas circunstâncias históricas
locais –, o que possibilita abarcar com mais facilidade as incoerências dos
modelos anteriores. Os estudos indicam que há uma atenção voltada aos possíveis
desacertos e à consciência crítica de repará-los com prontidão. As conclusões,
portanto, acumuladas em retrocessos e avanços, aliadas ao resgate das
experiências coletivas no campo educacional, desde a década de 60, representam
um fator decisivo na efetividade das transformações. O que foi possível
inferir, deste processo de investigação, é que os institutos superiores
pedagógicos em Cuba criaram um caldo de práticas, acumuladas ao longo de quase
50 anos na formação de professores, capaz de trabalhar os problemas de forma
abrangente e com a urgência requerida pela complexidade do processo histórico
cubano.
Excelente entrevista. Opinião muito lúcida e consistente. É capaz de analisar não apenas a educação cubana, que muito interesse suscita, mas de identificar os problemas que enfrentamos na formação de professores brasileiros. Parabéns! Um abraço carinhoso para as amigas queridas. Rosana Pontes.
ResponderExcluirObrigada, queridas amigas!
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