terça-feira, 24 de maio de 2016

Ana Carolina Galvão Marsiglia

Em O que acontece com as crianças o poeta gaúcho Mário Quintana discorre sobre a sua meninice e a forma como começou a escrever. Imerso no que chamou de “mundaréu de história” ele nos conta o seu processo de encantamento em relação aos livros. O autor também aproveita para escrever nestas linhas poéticas dos anos 70 o seguinte:
“Ora, as crianças de hoje não se acostumam a ler correntemente, porque apenas olham as figuras dessas histórias em quadrinhos, cujo “texto” se limita a simples frases interjeitivas e assim mesmo muita vez incorretas.”
O fato das nossas crianças estarem até hoje relegadas às modas teóricas que pouco ou nada contribuem para emancipação humana não é nenhuma novidade. A educação brasileira vai mal, mas entre tantos disparates acadêmicos surgem aqui e acolá professores e pesquisadores extremamente sérios e realmente preocupados com a infância.
Ana Carolina Galvão Marsiglia é doutora em Educação pela Unesp ( Araraquara). Sob a orientação de Dermeval Saviani realiza atualmente o seu Pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).  Atua também como professora no Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma Universidade.
Entre suas obras mais conhecidas destacamos: A prática pedagógica histórico-crítica na educação infantil e no ensino fundamental e As perspectivas construtivistas e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita.
Nesta entrevista Ana Carolina discorreu sobre a educação infantil e, também sobre o Seminário que está organizando para o mês de outubro no Espírito Santo: Dermeval Saviani e a Educação Brasileira.


                                                                       Foto: Raphael Teixeira


Tecendo em Reverso - Dentre outras temáticas, um dos assuntos estudados por você é a infância sob a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica. Quais são hoje os maiores problemas enfrentados por professores na educação infantil brasileira?

ANA CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Os problemas que se apresentam para a educação brasileira em geral são diversos. Vão desde as questões de infraestrutura, que influenciam na atividade do educador (como superlotação de salas, falta de material pedagógico, espaços físicos etc.), passando por aspectos relacionados à autonomia dos professores (instituição de mecanismos de controle coercitivo e meritocráticos), chegando até à problemática da formação docente e as questões salariais, jornada de trabalho etc. No caso da educação infantil, não é diferente. No entanto, há uma particularidade no caso desse segmento que é uma maior desvalorização da docência na educação infantil, do que em outros níveis e modalidades de ensino. Com esmagadora maioria de mulheres em exercício, a educação infantil é confundida com maternagem, que se expressa em jargões de senso comum, que associam “ser boa mãe”, “gostar de crianças” como critério para ser uma boa professora. A própria forma como as crianças são incentivadas a chamarem suas professoras (“tia”) expressa essa confusão de papéis familiares com a atividade profissional. E isso, em boa medida, contribui para que a educação infantil seja compreendida como espaço de desenvolvimento de afetos, como se fosse possível separá-los do desenvolvimento cognitivo das crianças. As consequências são (entre outras), por um lado, a desqualificação dos profissionais desse segmento e por outro, o entendimento de que a educação infantil está muito mais ligada ao cuidado do que à educação, criando uma dicotomia entre esses aspectos que é infrutífera à formação das crianças. Mas, se historicamente a educação infantil vem de uma tradição de assistencialismo, o que ajuda a explicar essas questões, também não podemos desconsiderar que isso continua acontecendo com o apoio de ideias dominantes que, para os pequenos, se expressa em discursos como a “Pedagogia da Infância”, que defende o afastamento do tratamento da educação infantil como escola, como espaço formativo intencional e diretivo.


Tecendo em Reverso- Muitas vezes temos a ideia de creche como um depósito de crianças com profissionais mal preparados “tomando” conta dos bebês. Como trabalhar para modificar a visão assistencialista que vai se solidificando sobre estas instituições?

ANA CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Em articulação ao respondido na questão anterior, essas ideias são muito presentes e estão bastante atualizadas pelas pedagogias do “aprender a aprender” (nos termos do professor Newton Duarte). A mudança dessa visão depende da formação dos professores por uma perspectiva contra-hegemônica, que valorize o ato de ensinar e que compreenda o papel do ensino, desde os pequenos. Mas não nos esqueçamos que, se o interesse pela profissão docente em geral não é mais o mesmo de outras épocas, em função das precárias condições de trabalho e salariais, no caso da educação infantil esse assistencialismo agrava ainda mais o caso, posto que se espera muito pouco do exercício profissional desses docentes. Como já afirmei, basta “gostar de criança”, o que cria condições de trabalho e salariais ainda menos vantajosas. Isso significa que ter bons profissionais na educação infantil passa, para além da formação, pelo incentivo à carreira.


Tecendo em Reverso - Sabe-se que a literatura contribui muito para a formação humana. Em que medida os livros adotados por escolas para as crianças da educação infantil podem influenciar positiva ou negativamente no processo de formar leitores?

ANA CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Não apenas os livros, mas os brinquedos, as músicas, os jogos, enfim, todos os materiais exercem influência positiva ou negativa na formação das crianças. Assim, livros de boa qualidade são essenciais para a formação de bons leitores, assim como todos os outros materiais terão relevância na formação integral dos sujeitos. A questão é: o que é um bom livro/brinquedo/jogo/música etc.? Reconhecer um material de qualidade implica conhecer as características do desenvolvimento das crianças, em suas diferentes idades e particularidades, de forma a oferecer a elas os recursos mais elaborados para colaborar em seu processo de humanização. Além disso, é preciso tomar como critério de seleção, aquilo que Dermeval Saviani define como “clássico”: o que tem validade histórica mesmo fora de seu tempo; carrega em si uma concepção de mundo; é modelar em suas qualidades – as mais diversas: riqueza conceitual, sofisticação linguística, propriedades estéticas etc.


Tecendo em Reverso - Como prática social e a prática educativa coadunam-se dentro da perspectiva histórico-crítica?

ANA CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – A prática social é ponto de partida e ponto de chegada da prática educativa. Isso porque a prática educativa é uma modalidade de prática social. Logo, ela deve desenvolver-se de modo a enriquecer, alterar, transformar a prática social. Para atingir esse objetivo, é preciso que a prática educativa atue a partir (ponto de partida) dos problemas da prática social, instrumentalizando os indivíduos para que ascendam a formas de pensamento (teoria) mais elaboradas, que se efetivem (ponto de chegada) na vida das pessoas (prática). A questão é que as práticas pedagógicas dominantes (de cunho pós-moderno), por tomarem a vida cotidiana como pauta da educação escolar, tem ponto de partida (a prática social), mas não tem ponto de chegada como algo qualitativamente superior. Nessas pedagogias, temos, como costumo chamar, de ponto de “ficada” em lugar do ponto de chegada. Ora, isso acontece porque a escola de base teórica pós-moderna, parte do cotidiano e fica nele, pois não avança em direção à vida não cotidiana (arte, filosofia, ciência, política).


Tecendo em Reverso - Para o mês de outubro você está organizando em Vitória (ES) o seminário “Dermeval Saviani e a Educação Brasileira”. Como surgiu a ideia do evento e qual a importância deste educador para o povo brasileiro?

ANA CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Durante meus estudos de pós-doutorado, no ano de 2015, ao refazer o percurso das obras da pedagogia histórico-crítica e da trajetória pessoal de seu principal formulador, o professor Dermeval Saviani, me deparei com o ano de início de sua carreira docente (1966). Considerei então que precisávamos nos organizar para realização de uma merecida homenagem a ele. A trajetória de Saviani se revela comprometida com a educação se expressa em sua atuação teórico-prática no campo educacional. A quantidade e a qualidade de seus escritos nos comprovam que suas ideias são oportunas e contemporâneas, constituindo-se contribuição ímpar para a educação brasileira. Sua atuação institucional em diferentes instâncias em muito alavancou a educação brasileira. Colocando sua competência de trabalho à disposição da educação, Saviani realiza um trabalho rigoroso, cuidadoso, sério e agrega a isso sua capacidade de dialogar, conviver e respeitar a todos, de maneira aberta e sensível. A isso se deve parte da penetração que ele consegue ter, pois viabiliza que o outro se desenvolva, mesmo que em direção diferente da sua, promovendo o debate franco e fraterno entre pares. Sua postura ética, sua contribuição acadêmica, seja na formação de quadros ou por meio de suas inúmeras publicações que expressam sua postura de militante intelectual, são um dos melhores e maiores testemunhos da luta pela educação básica e superior hoje no país, sendo justa a homenagem para ele organizada em seus 50 anos de carreira.





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