Em O que
acontece com as crianças o poeta gaúcho Mário Quintana discorre sobre a
sua meninice e a forma como começou a escrever. Imerso no que chamou de
“mundaréu de história” ele nos conta o seu processo de encantamento em relação
aos livros. O autor também aproveita para escrever nestas linhas poéticas dos
anos 70 o seguinte:
“Ora,
as crianças de hoje não se acostumam a ler correntemente, porque apenas olham
as figuras dessas histórias em quadrinhos, cujo “texto” se limita a simples
frases interjeitivas e assim mesmo muita vez incorretas.”
O
fato das nossas crianças estarem até hoje relegadas às modas teóricas que pouco
ou nada contribuem para emancipação humana não é nenhuma novidade. A educação
brasileira vai mal, mas entre tantos disparates acadêmicos surgem aqui e acolá
professores e pesquisadores extremamente sérios e realmente preocupados com a
infância.
Ana
Carolina Galvão Marsiglia é doutora em Educação pela Unesp ( Araraquara). Sob a
orientação de Dermeval Saviani realiza atualmente o seu Pós-doutorado na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua também como professora no Centro de
Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e no Programa de
Pós-Graduação em Educação da mesma Universidade.
Entre
suas obras mais conhecidas destacamos: A prática pedagógica histórico-crítica na
educação infantil e no ensino fundamental e As perspectivas construtivistas e
histórico-crítica sobre o desenvolvimento da escrita.
Nesta
entrevista Ana Carolina discorreu sobre a educação infantil e, também sobre o
Seminário que está organizando para o mês de outubro no Espírito Santo: Dermeval
Saviani e a Educação Brasileira.
Foto: Raphael Teixeira
Tecendo
em Reverso - Dentre outras temáticas, um dos assuntos estudados por você é a
infância sob a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica. Quais são hoje os
maiores problemas enfrentados por professores na educação infantil brasileira?
ANA
CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Os problemas que se apresentam para a educação
brasileira em geral são diversos. Vão desde as questões de infraestrutura, que
influenciam na atividade do educador (como superlotação de salas, falta de
material pedagógico, espaços físicos etc.), passando por aspectos relacionados
à autonomia dos professores (instituição de mecanismos de controle coercitivo e
meritocráticos), chegando até à problemática da formação docente e as questões
salariais, jornada de trabalho etc. No caso da educação infantil, não é
diferente. No entanto, há uma particularidade no caso desse segmento que é uma
maior desvalorização da docência na educação infantil, do que em outros níveis
e modalidades de ensino. Com esmagadora maioria de mulheres em exercício, a
educação infantil é confundida com maternagem, que se expressa em jargões de
senso comum, que associam “ser boa mãe”, “gostar de crianças” como critério
para ser uma boa professora. A própria forma como as crianças são incentivadas
a chamarem suas professoras (“tia”) expressa essa confusão de papéis familiares
com a atividade profissional. E isso, em boa medida, contribui para que a
educação infantil seja compreendida como espaço de desenvolvimento de afetos,
como se fosse possível separá-los do desenvolvimento cognitivo das crianças. As
consequências são (entre outras), por um lado, a desqualificação dos
profissionais desse segmento e por outro, o entendimento de que a educação
infantil está muito mais ligada ao cuidado do que à educação, criando uma
dicotomia entre esses aspectos que é infrutífera à formação das crianças. Mas,
se historicamente a educação infantil vem de uma tradição de assistencialismo,
o que ajuda a explicar essas questões, também não podemos desconsiderar que
isso continua acontecendo com o apoio de ideias dominantes que, para os
pequenos, se expressa em discursos como a “Pedagogia da Infância”, que defende o
afastamento do tratamento da educação infantil como escola, como espaço
formativo intencional e diretivo.
Tecendo
em Reverso- Muitas vezes temos a ideia de creche como um depósito de crianças
com profissionais mal preparados “tomando” conta dos bebês. Como trabalhar para
modificar a visão assistencialista que vai se solidificando sobre estas
instituições?
ANA
CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Em articulação ao respondido na questão anterior,
essas ideias são muito presentes e estão bastante atualizadas pelas pedagogias
do “aprender a aprender” (nos termos do professor Newton Duarte). A mudança
dessa visão depende da formação dos professores por uma perspectiva
contra-hegemônica, que valorize o ato de ensinar e que compreenda o papel do
ensino, desde os pequenos. Mas não nos esqueçamos que, se o interesse pela
profissão docente em geral não é mais o mesmo de outras épocas, em função das
precárias condições de trabalho e salariais, no caso da educação infantil esse
assistencialismo agrava ainda mais o caso, posto que se espera muito pouco do
exercício profissional desses docentes. Como já afirmei, basta “gostar de
criança”, o que cria condições de trabalho e salariais ainda menos vantajosas.
Isso significa que ter bons profissionais na educação infantil passa, para além
da formação, pelo incentivo à carreira.
Tecendo
em Reverso - Sabe-se que a literatura contribui muito para a formação humana.
Em que medida os livros adotados por escolas para as crianças da educação
infantil podem influenciar positiva ou negativamente no processo de formar
leitores?
ANA
CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Não apenas os livros, mas os brinquedos, as
músicas, os jogos, enfim, todos os materiais exercem influência positiva ou
negativa na formação das crianças. Assim, livros de boa qualidade são essenciais
para a formação de bons leitores, assim como todos os outros materiais terão
relevância na formação integral dos sujeitos. A questão é: o que é um bom
livro/brinquedo/jogo/música etc.? Reconhecer um material de qualidade implica
conhecer as características do desenvolvimento das crianças, em suas diferentes
idades e particularidades, de forma a oferecer a elas os recursos mais elaborados
para colaborar em seu processo de humanização. Além disso, é preciso tomar como
critério de seleção, aquilo que Dermeval Saviani define como “clássico”: o que
tem validade histórica mesmo fora de seu tempo; carrega em si uma concepção de
mundo; é modelar em suas qualidades – as mais diversas: riqueza conceitual,
sofisticação linguística, propriedades estéticas etc.
Tecendo
em Reverso - Como prática social e a prática educativa coadunam-se dentro da
perspectiva histórico-crítica?
ANA
CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – A prática social é ponto de partida e ponto de
chegada da prática educativa. Isso porque a prática educativa é uma modalidade
de prática social. Logo, ela deve desenvolver-se de modo a enriquecer, alterar,
transformar a prática social. Para atingir esse objetivo, é preciso que a
prática educativa atue a partir (ponto de partida) dos problemas da prática
social, instrumentalizando os indivíduos para que ascendam a formas de
pensamento (teoria) mais elaboradas, que se efetivem (ponto de chegada) na vida
das pessoas (prática). A questão é que as práticas pedagógicas dominantes (de
cunho pós-moderno), por tomarem a vida cotidiana como pauta da educação
escolar, tem ponto de partida (a prática social), mas não tem ponto de chegada
como algo qualitativamente superior. Nessas pedagogias, temos, como costumo
chamar, de ponto de “ficada” em lugar do ponto de chegada. Ora, isso acontece
porque a escola de base teórica pós-moderna, parte do cotidiano e fica nele,
pois não avança em direção à vida não cotidiana (arte, filosofia, ciência,
política).
Tecendo
em Reverso - Para o mês de outubro você está organizando em Vitória (ES) o
seminário “Dermeval Saviani e a Educação Brasileira”. Como surgiu a ideia
do evento e qual a importância deste educador para o povo brasileiro?
ANA
CAROLINA GALVÃO MARSIGLIA – Durante meus estudos de pós-doutorado, no ano de
2015, ao refazer o percurso das obras da pedagogia histórico-crítica e da
trajetória pessoal de seu principal formulador, o professor Dermeval Saviani,
me deparei com o ano de início de sua carreira docente (1966). Considerei então
que precisávamos nos organizar para realização de uma merecida homenagem a ele.
A trajetória de Saviani se revela comprometida com a educação se expressa em
sua atuação teórico-prática no campo educacional. A quantidade e a qualidade de
seus escritos nos comprovam que suas ideias são oportunas e contemporâneas,
constituindo-se contribuição ímpar para a educação brasileira. Sua atuação
institucional em diferentes instâncias em muito alavancou a educação
brasileira. Colocando sua competência de trabalho à disposição da educação,
Saviani realiza um trabalho rigoroso, cuidadoso, sério e agrega a isso sua
capacidade de dialogar, conviver e respeitar a todos, de maneira aberta e
sensível. A isso se deve parte da penetração que ele consegue ter, pois
viabiliza que o outro se desenvolva, mesmo que em direção diferente da sua,
promovendo o debate franco e fraterno entre pares. Sua postura ética, sua
contribuição acadêmica, seja na formação de quadros ou por meio de suas
inúmeras publicações que expressam sua postura de militante intelectual, são um
dos melhores e maiores testemunhos da luta pela educação básica e superior hoje
no país, sendo justa a homenagem para ele organizada em seus 50 anos de
carreira.