No decorrer destes
últimos dias a mídia brasileira tem esboçado um quadro degradante da Venezuela
na procura de alimentar ainda mais a sanha golpista da mega concentração de
capitais.
Num processo em
que, parafraseando Maiakóvski: O aço das palavras vão enferrujando as mentes
mais distraídas, as aberrações vão se repetindo aqui e acolá com a força e a
credibilidade do nosso tão alardeado jornalismo declaratório.
Diante deste
estado de coisas, alguns pesquisadores comprometem-se em estudar o país de Hugo
Chávez nos trazendo importantes informações na área da pesquisa.
Débora Villetti
Zuck é pedagoga na Universidade Federal da Integração Latino- Americana
(UNILA). É doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e membro dos grupos de pesquisa: GPPS - Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais e HISTEDBR -
Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil”.
Conversamos com a
pesquisadora sobre sua dissertação de mestrado com o tema: A
INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA EXPRESSA NA EDUCAÇÃO VENEZUELANA DOS GOVERNOS
CHÁVEZ: 1999-2009”.
Confiram:
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo
em Reverso - Como surgiu a proposta de encaminhar sua pesquisa com o tema: “A
INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA EXPRESSA NA EDUCAÇÃO VENEZUELANA DOS GOVERNOS
CHÁVEZ: 1999-2009”.
DÉBORA
VILLETTI ZUCK – Durante meu percurso acadêmico, quando cursei Pedagogia, pude me
aproximar de conhecimentos sobre a América Latina, principalmente da influência
de organismos internacionais ou regionais nas formulações de políticas de
educação por meio de pesquisas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa em Políticas
Sociais da UNIOESTE em Cascavel no Paraná. Nos anos de 2007 e 2008, em projetos
de iniciação científica, pesquisei sobre a concepção de Educação Escolar
Bolivariana da Venezuela, de 2003-2008, no Proyecto
Simoncito, Escuela Bolivariana e Liceo Bolivariano – que na prática
fizeram parte do que ficou conhecido, após 2003, como Sistema Educativo
Bolivariano, abrangendo da educação infantil a universidade, mas cuja vigência,
inicialmente, quando de sua implementação, em 1999, ocorreu de forma
experimental durante 3 anos e em paralelo à educação formal convencional
ofertada naquele país. Foi assim que tive contato com a educação na Venezuela. Depois
disso, pesquisei também a concepção de educação do Programa Nacional de
Formação de Educadores e Educadoras na Universidade Bolivariana da Venezuela
(UBV), programa voltado à formação de professores que faz parte desta Universidade
e da Missão Sucre, expressões importantes na Política Educacional para o Ensino
Superior venezuelano. Naquela época, percebi que a integração latino-americana
era um aspecto que permeava os documentos educacionais daquele país, além de
estar em voga nos discursos oficiais do governo, fiquei instigada em compreender
as interfaces deste conceito, do âmbito de relações internacionais, da economia
e da política externa, ao se materializar na educação neste período histórico.
Assim, minha investigação no mestrado teve como objeto de estudo a categoria
integração da América Latina expressa nos documentos legais e oficiais da
educação escolar bolivariana da República Bolivariana da Venezuela, de 1999 a
2009, ou seja, do marco temporal de início dos governos Chávez e de instituição
das Escolas Bolivarianas ao ano de aprovação da Lei Orgânica de Educação (LOE/2009),
superando a lei anterior datada de 1980, e que indicava que uma mudança no
conjunto da sociedade estava movendo a escola e a alteração na legislação
educacional.
Tecendo
em Reverso - Numa perspectiva histórica como se dá a integração
latino-americana?
DÉBORA
VILLETTI ZUCK – A integração latino-americana é um “espectro” que ronda o
continente há bastante tempo e sob diversas nuances: obscurecido pelo marco de
interpretações eurocêntricas sobre os nossos problemas e o que nos “constitui”;
marcado pela predominância das orientações políticas das classes dominantes sobre
o projeto integracionista, que deram o “tom” da integração em curso em cada
momento, articulado a um projeto societário. Pode-se dizer que o conceito de
integração da América Latina está vinculado à história da nação
latino-americana, remonta à colonização e ao processo de independência política
do jugo espanhol que deu origem a algumas repúblicas, no século XIX, bem como à
histórica dependência econômica da região. Todavia, aquele processo não
permitiu – pelo regionalismo das lideranças, particularidades e
individualização – que se materializasse um projeto latino-americano, a Pátria
Grande de Bolívar ou a Nuestra America
de Martí, seguindo ideais de solidariedade continental e de proteção recíproca
contra a antiga metrópole. Galeano (2004), outrora, questionava qual integração
poderiam realizar, entre si, países que sequer se integraram internamente, pois
a situação que constituía as relações colônia-metrópole, excluía as relações de
tipo colônia-colônia. Além de não terem desvelado o âmago do problema da
“identidade” nacional dos povos do Sul, uma questão de classe. Florestan
Fernandes (1999), ao tratar sobre a formação e os padrões de dominação externa
na América Latina, deixou relevante contribuição a este debate ao explicitar
que “as nações latino-americanas são produtos da ‘expansão da civilização
ocidental’, isto é, de um tipo moderno de colonialismo organizado e
sistemático” que adquire sua forma mais complexa após a emancipação nacional
dos países, persistindo pela evolução do capitalismo e pela incapacidade dos
países latino-americanos de impedirem a sua incorporação dependente ao espaço
econômico, cultural e político das nações capitalistas homogêneas. E é enquanto
incorporação e submissão, ou uma integração subordinada, que a orientação
monroísta ganha forma e perdura ao longo dos séculos XIX e XX, contexto em que
o pan-americanismo se difundiu e que sob a prática do postulado de uma “América
para os Americanos (do Norte!)”, a intenção imperialista dos Estados Unidos de
incorporar a totalidade das Américas sob seu mandato é conduzida, de modo
intervencionista. Já após a Segunda Guerra Mundial, como parte da recomposição
do capitalismo internacional, emergem vários mecanismos integracionistas,
blocos econômicos na Europa e, também, na América Latina. A integração impulsionada
nos anos 1950 a 1970, enquanto mecanismo para a ampliação dos mercados e para
novas etapas do processo de substituição de importações (ALALC, ALADI, por
exemplo), com o neoliberalismo, a partir dos anos 1980 e 1990, adquire novos
contornos. Trata-se de um “regionalismo aberto” que combina integração
regional, liberalização comercial e intensificação dos vínculos econômicos com
o exterior (vide ALCA e os Tratados
de Livre Comércio), tendo em vista uma maior competitividade e inserção na economia
mundial baseando-se na ideia de um mercado único dominado pelo grande capital
(financeiro). Ou seja, de integração quando predomina a internacionalização do
capital como se a concorrência fosse favorável numa época em que o mercado está
oligopolizado. Frente ao cunho meramente comercial da integração confronta-se a
orientação bolivariana retomada por alguns governos da região (e pela ALBA-TCP),
que querem dar um conteúdo de “justiça social” à integração. Na atualidade,
coexistem vários processos de integração: MERCOSUL, UNASUL, CARICOM, PARLATINO,
IIRSA, ALBA-TCP, CELAC, entre outros, seguindo objetivos e finalidades específicas,
mas, na maioria, está presente a noção de integração enquanto motor do
desenvolvimento. E, ainda, a compreensão deste fenômeno historicamente é
atravessado por perspectivas teóricas liberais, estruturalistas, muitas vezes ecléticas,
algumas marxistas. Há, nos termos de Toussaint (2009), uma disputa entre
projetos de integração, pois há conteúdos de classe antagônicos nestes. Poucos
estudos sobre este tema mencionaram que entender o desenvolvimento remete a
compreender a situação específica latino-americana no contexto da sociedade
capitalista, e ao lugar diferenciado que ocupam em relação aos países centrais
na divisão internacional do trabalho, à luz da interpretação do desenvolvimento
periférico e dependente. A América Latina abarca nações diferentes, todas
com desenvolvimento capitalista dependente, umas com padrão relativamente
importante, outras com processos industriais incipientes; países com
concentrações urbanas elevadas e com população rural, além de diferenças
populacionais, desigualdades de PIB; países com população originária, com
idioma e cultura conservada. Assim, falar de integração da América
Latina é falar de um processo que abrange distintos âmbitos, como o social, o
econômico, o político, o cultural, o educacional e não simplesmente uma
integração comercial. Pois, o que se integra são as distintas partes de algo,
constituindo a unidade por integração. A diversidade e a diferença são fatores
importantes para construir a unidade, para integrar componentes afins e abarcar
as características distintas na ação dinâmica de um propósito comum. Mas, para
isso, é preciso ter em vista o que integrar, para que, como e com quem. Portanto,
cogitar em
uma integração latino-americana requer que se compreenda essa latitude e esse
espaço determinado, de fronteiras instáveis, elementos culturais fluidos,
étnicos, mescla cultural de povos, enfim, suas especificidades. No que tange à
integração da América Latina que a Venezuela defende, explícita no preâmbulo
constitucional bem como nos programas econômicos e sociais da nação, observa-se
que esta foi realizada apenas parcialmente, o que em parte se deve à
instabilidade tanto econômica quanto política que o país passou entre 1999-2003,
sofrendo alterações após este período com a saída do país da CAN, pleiteando
sua entrada no MERCOSUL, participando decisivamente junto com Cuba na ALBA-TCP
e na CELAC. A integração, articulada internamente com a chamada Revolução
Bolivariana e externamente em particular via ALBA-TCP, é guiada politicamente,
quer anti-imperialista, ou, como a partir de 2007, também com viés anticapitalista.
O substrato teórico dessa integração, de caráter bolivariano, é a
solidariedade, a complementaridade e a cooperação – e que no caso da ALBA-TCP
incorpora, ainda, a justiça, delineando, assim, um projeto integracionista grannacional, enquanto um bloco
geopolítico contra hegemônico (NOYA, 2010) ou de um regionalismo
contra-hegemônico na América Latina e Caribe (MUHR, 2010) – que vislumbra
romper com princípios da lógica liberal, apesar da histórica presença
energética, em razão do potencial venezuelano petroleiro.
Tecendo
em Reverso – De que maneira a integração ocorre no Sistema Educativo
Bolivariano no período do governo de Hugo Chávez?
DÉBORA VILLETTI ZUCK – O objetivo central do meu estudo
centrou-se nisso e, com o desenvolvimento da pesquisa, pude identificar que a educação
bolivariana da Venezuela, no período estudado, expressa o tema da integração
latino-americana. Esse “expressa” se revela concretamente em orientações
filosóficas do Diseño Curricular del Sistema Educativo Bolivariano, no
caráter das Escuelas Bolivarianas, em objetivos e conteúdos curriculares
do Liceu Bolivariano, no Sistema Educativo Bolivariano, na definição do que é o
Estado Docente e como finalidade da educação na LOE/2009, ou seja, nos
diferentes documentos oficiais e legais da educação, e, aliás, não apenas
nestes. Um elemento relevante e norteador é o preâmbulo da Carta magna de 1999,
pois traz a tônica do debate, qual seja,
que se promova a cooperação pacífica entre as nações e se impulsione e
consolide a integração latino-americana de acordo com o princípio da não intervenção
e da autodeterminação dos povos, a garantia universal e indivisível dos
direitos humanos e a democratização da sociedade internacional. Em
razão de que a educação escolar de forma mediatizada é parte do movimento das
relações sociais, a soberania está vinculada estreitamente ao conceito de
Estado Docente, que intervém, direciona e exerce a reitoria da educação. Isso
permite estabelecer políticas que se traduzam em mecanismos de integração no
interior da escola. Isso porque, o Estado que emerge na idade moderna e também
esse Estado venezuelano, neste momento da história, a partir do bloco chavista
no poder, cumprirá o seu papel hegemônico: direcionar a educação escolar nesse
país (pois quando a educação foi neutra ou isenta de posição?). A educação bolivariana
implementada nos governos Chávez era parte do projeto de nação orientado para “refundar
a república” e que direcionava-se à superação do capitalismo e à construção do chamado
“Socialismo do Século XXI”. Dentre os princípios constitucionais está à
motivação de refundar a república para estabelecer uma sociedade democrática,
baseada na educação e no trabalho como processos fundamentais para garantir os
fins do Estado. A LOE/2009, expressão jurídica da vontade do Estado, enquanto
orientação marco da educação venezuelana, fez parte, juntamente com o trabalho,
dessa refundação. No Sistema Educativo Bolivariano, propriamente, o tema da
integração latino-americana aparece nas bases conceituais, filosóficas, das Escolas
Bolivarianas, enquanto compromisso do Ministério de Educação de que todas as escolas
venezuelanas se convertessem em Escolas Bolivarianas, pela denominação
representar uma grande responsabilidade relacionada à conotação histórica que
evoca e convoca. A menção ao “Libertador”, Bolívar, suas ideias e ações – em
que pesam críticas sobre o viés liberal e sua vinculação à burguesia local –,
faz alusão à nacionalidade: destacar o bolivariano remete as tradições e aos
fundadores da nação; reivindica as potencialidades e as fortalezas como país e
como povo, abrindo possibilidades para contextualizá-lo e resignificá-lo na realidade
de hoje (VENEZUELA, 2006). A noção bolivariana, ainda, neste documento: i) corresponde
à escola que assume a ideia de mudança, de ruptura, de persistência e de
reflexão; ii) reconhece, enquanto nação, sua história e suas referências
comuns, que se constroem e reconstroem na ação diária, na capacidade para
assumir um projeto conjunto; iii) “el
carácter bolivariano de las escuelas nos recuerda que somos latinoamericanos y
caribeños, y que como tales, tenemos que ver y comprender hacia el Sur, hacia
Centroamérica y las Antillas, porque nuestra suerte es necesariamente
compartida y las posibilidades de futuro común están atadas a nuestra capacidad
de integración”; e iv) significa o compromisso que deve ser traduzido em
sala de aula, convertendo os ideais em realidade. Também, enquanto conteúdo a
ser transmitido em diferentes níveis, relacionados a blocos econômicos e a um
mundo pluripolar. No Diseño Curricular del Sistema Educativo Bolivariano,
enquanto Currículo Nacional Bolivariano que orienta as Escolas Bolivarianas,
delineia as bases históricas, pedagógicas, filosóficas, sociais, culturais,
psicológicas, políticas, metodológicas, científicas e humanistas a partir das
quais se implementou a formação das crianças, jovens e adultos venezuelanos, a
integração relaciona-se aos fundamentos do pensamento pedagógico, ou seja, em
concepções filosóficas de cunho humanista e libertárias. Por sua vez, na
LOE/2009, anseios e demandas educacionais postas na Constituição de 1999 e que
não estavam presentes na LOE/1980, foram, na correlação de forças e após uma
luta da direita contra a aprovação, sancionadas somente depois do golpe de
Estado e da greve petroleira – pois após o projeto inicial de lei em 2001, a
discussão foi paralisada, só retornando como pauta em 2005. Na LOE/2009, a
integração aparece articulada à formação enquanto parte dos princípios e
valores que orientam a educação: “la
formación para la independencia, la libertad y la emancipación, la valoración y
defensa de la soberania [...] el fortalecimiento de la identidad nacional, la
lealtad a la patria e integración latinoamericana y caribenha”, bem como
entre as competências do Estado Docente está garantir “El obligatorio
cumplimiento de la educación en la doctrina de nuestro Libertador Simón Bolívar” (VENEZUELA, 2009). A
integração da América Latina assumida pela Venezuela adquire maior relevância política
e pedagógica na LOE/2009. Isso se traduz num instrumento fundamental para a formação
do “homem novo” venezuelano, latino-americano, que, imbuído dessa noção de
integração, poderia contribuir para a construção de outro projeto societário,
distinto do capitalismo. Mas, ao mesmo tempo, isso não dispensa a necessária
ampliação da investigação historiográfica sobre a perspectiva integracionista,
bem como de formação inicial e continuada dos professores.
Tecendo
em Reverso- Em termos de currículo escolar como se pensou a educação
venezuelana no período pesquisado?
DÉBORA VILLETTI ZUCK – Desde a ascensão ao poder, os
governos de Chávez procuraram implementar um projeto econômico, político e
cultural que teve como objetivo central “refundar a república” a partir da
ampliação da participação do povo nas decisões políticas, por meio de diversos
mecanismos constitucionais como o referendo, a consulta popular e os Conselhos
Comunais, e pela incorporação massiva da população nas Missões Sociais em
diversas áreas sociais. As políticas de educação, por sua vez, também estiveram
pautadas em programas inclusivos e massivos, a fim de conquistar condições de
acesso e permanência na educação escolar, em todos os níveis, às massas
historicamente marginalizadas desse bem social. Inclusive, como forma de
responder às demandas sociais, frente os resultados nefastos de quase duas
décadas do neoliberalismo, com o desmantelamento do ensino, a deteriorização da
infraestrutura e a cobrança de matrícula que afetaram a educação da classe
trabalhadora e de uma massa de trabalhadores informais.
As primeiras propostas de transformação na área
educacional apareceram na Constituinte Educativa, que realizou atividades em
nível nacional e depois em Caracas. A essa moveu-se uma campanha contrária e
atribuíram-se conotações típicas da ideologia burguesa, tais como: “se van a
adoctrinar a los niños”, “es un proyecto autoritário”, “se van a cubanizar la
educación”. Na prática, a expressão mais contundente de mudança foi a
implementação do Sistema Educativo Bolivariano, em 2003, e cujo germe está em
1999, quando as Escolas Bolivarianas foram instituídas para atender a população
estudantil dos níveis de pré-escola, primeira e segunda etapa da educação
primária, e utilizadas como centros de formação de adultos. O Sistema Educativo
Bolivariano foi constituído da seguinte forma: Simoncito (educação infantil de
0-6 anos), Escolas Bolivarianas (educação primária de 6-12 anos), Liceu
Bolivariano (ensino médio aos jovens entre 13-18 anos; educação diversificada
com duração de 5 anos, ou educação técnica, ofertada pelas Escolas Técnicas Robinsonianas,
de 6 anos), UBV (ensino superior) e Missões Educativas: Robinson (alfabetização
e educação primária), Ribas (educação secundária) e Sucre (ensino superior) –
para atender a população que estava fora da idade escolar, na modalidade de
educação de jovens e adultos. Foi neste sistema que houve a introdução de uma
nova mentalidade pedagógica, além de um conjunto de elementos sistematizados,
estruturados e articulados, com objetivos e finalidades estabelecidas pelo
Estado. Nele, explicita-se a perspectiva de educação bolivariana, a
orientação-marco e a ordenação do processo educativo em âmbito do que, na
LOE/2009, constituiria o subsistema de educação básica e universitária, níveis
e modalidades de ensino. Além disso, há um rompimento com a concepção
internacionalista dos pilares da educação difundidos pela UNESCO, explícitos no
Relatório de Jacques Delors, como se supostamente fossem válidos para qualquer
país. Estes pilares, todavia, são ressignificados à luz das contribuições de
venezuelanos e do pensamento pedagógico latino-americano, dentre eles Bolívar e
Paulo Freire, por exemplo, evidenciando, no mínimo, um ecletismo de concepções.
A educação, enquanto parte dos direitos sociais, é definida da Constituição
venezuelana de 1999 como um direito humano, um dever social, uma função
indeclinável do Estado e um serviço público. Assim entendida, o Estado tem a
atribuição de intervir e orientá-la, a fim de garantir o direito de todos (as)
os (as) venezuelanos (as) a uma educação integral (ou seja, com jornada escolar
diária de 8 horas e atenção nutricional, alimentação, saúde, formação esportiva
e cultural, apoio às atividades escolares e de aparato legal, processo que está
em andamento), de qualidade (um amplo debate, em âmbito nacional, foi realizado
em 2014-2015, com consulta pela qualidade educacional, o que possibilitou um
panorama da educação e um mandato para a formulação das políticas), permanente,
em “igualdade de condições”, num total de 18 anos de educação obrigatória para
todos. Em relação à experiência em curso, dados educacionais do período
pesquisado revelaram que houve um incremento expressivo na cobertura educativa,
em prol da democratização deste direito em todos os níveis, com destaque para a
educação inicial (infantil), secundária e, principalmente, a universitária, uma
das mais elitizadas – conforme dados divulgados pela própria UNESCO (2009), a
Venezuela ocuparia o 5º lugar mundial e o 2º na América Latina (somente atrás
de Cuba), com taxa de cerca de 2,5 vezes a média regional, que era de 34%. Além
disso, com assessoria educacional cubana para implementar o método Yo sí
puedo, em um ano e meio alcançou o
objetivo de erradicar 1,5 milhões de analfabetos e, em 2005, o país erradicou o analfabetismo pois naquele
momento apresentava uma porcentagem inferior a 4% de analfabetos. Vale
mencionar, ainda, que medidas como o aumento dos recursos financeiros – em
determinados anos, mas não como tendência – e bolsas de estudo, a eliminação da
cobrança da taxa de matrícula, o uso do texto único (as Cartilhas
Bolivarianas), o programa de alimentação escolar, a construção de escola e o
desenvolvimento do programa Canaima, voltado à alfabetização digital e a distribuição
de laptops aos estudantes, favoreceram a redução das taxas de abandono e
repetência e a obtenção de taxas mais elevadas de prosseguimento educativo.
Tecendo
em Reverso – Na sua dissertação lemos: “Há uma tensão latente entre a escola
ser determinada, na lógica da totalidade, da luta de classes, e determinar, ‘criar
o homem novo’. Aponta-se outra escola integrada a um conjunto de transformações
sociais, políticas e econômicas, bem como o papel que lhe cabe, dado o acesso
universal. Exige-se um currículo histórico, organização do trabalho pedagógico
e outra pedagogia, fundamentalmente latino-americana e caribenha, e não de
cunho internacionalista, como os pilares da educação expressos por Delors
sugerem à ‘aldeia global’. Nesse contexto determinado, a diferença da escola
venezuelana começa a ser ensejada e seu arcabouço teórico, metodológico,
curricular e, em suma, seus fundamentos podem ser ressignificados – como parece
delinear o Currículo Nacional Bolivariano – ou inaugurais, quiçá outros, em
novas relações de produção.” De que forma a América Latina pode repensar sua
educação diante dos ditames internacionais que nos chegam via políticas pouco
palatáveis e indiferentes a uma digna formação humana?
DÉBORA
VILLETTI ZUCK – Essa é uma questão realmente complicada, pois não há como estar
“imune” aos ditames internacionais que penetram nos planos, projetos,
programas, políticas e práticas, não só educacionais. Seja na formulação, na
concepção ou em sua implementação e avaliação (quando e se ocorre!), é fato que
os países latino-americanos, de longa data, têm pagado literalmente a conta da
crise capitalista em nível mundial e pela sua restruturação. Na maioria das
vezes, acordos e concessões a organismos multilateriais ou regionais são
firmadas, ou orientações são seguidas, em detrimento à maioria da população,
isto é, acabam sendo executados em prol de determinada fração de classe, de
interesses precisos para a manutenção deste modo de produção, em seus
rearranjos e tentáculos internacionais. O repensar a educação é sempre parte de
um projeto societário, segundo condições históricas determinadas, e objeto de
disputa, assim como o entendimento do que é a América Latina e da função que
esta tem no movimento da relação entre capital versus o trabalho. Grosso modo, é muito mais uma questão política
do que técnica. E que a Venezuela procurou enfrentar, como mencionei na questão
anterior. Ocorre que a educação é um espaço de disputa, seja no movimento de
transformação ou de conservação social e pode se constituir, por meio de suas
diversas práticas, formais ou não, em instrumento de tomada de consciência de
classe para si ou de reprodução do establishment. A
educação bolivariana da Venezuela, assim como os diferentes fenômenos
históricos, não está pronta e acabada, mas permeada pelo exercício da crítica e
por lutas e confrontos. A criação do “novo homem” é, pois, um objetivo de longo
prazo, inclusive para a Venezuela – que tem promovido reformas e pôs em pauta revolução,
todavia, no período pesquisado, evidencia-se um capitalismo de Estado. Em
relação à integração latino-americana, cabe pontuar, por fim, que os
interesses de classes e segmentos sociais, em alguns mecanismos, se materializam
numa integração setorizada: saúde, transporte, justiça, indústria, cultura,
agricultura, segurança e educação. Isto é, ideologicamente, essa integração
nega a totalidade da realidade, que compõe o desenvolvimento, pois se trata de
uma estratégia comum de exploração do capital sobre o trabalho na região,
otimizando os espaços privilegiados, garantindo, no âmbito do bloco, a
reprodução e a acumulação capitalista. Com isso, ela gerencia a contradição
estrutural que configura o desenvolvimento desigual e combinado do modo de
produção capitalista (BARBOZA, 2009). Logo, parece distante vislumbrar um
projeto de integração enquanto sujeitos históricos, tendo em vista os distintos
elos do sistema. Além disso, na história recente da Venezuela, extrapolando
minha pesquisa, os desafios enfrentados e os limites a serem superados são muitos.
A situação atual é de penúria social e intensificação da divulgação da mídia
internacional e local ao veicularem a vinculação da revolução bolivariana: ao terrorismo, ao narcotráfico ou ao
relacionamento econômico e diplomático com considerados ditadores e inimigos do
Ocidente. Extensiva propaganda negativa também esteve articulada as eleições
legislativas de 2010, contando com financiamento estadunidense clandestino e
oficial da Secretaria de Estado norte americano, tendo em vista a possibilidade
de Chávez perder a maioria de 2/3, e em decorrência disso não poder alterar a
Constituição para aprofundar o projeto em curso. Com a doença de Chávez
anunciada em 2011, a manutenção de sua candidatura e sua vitória em 2012, sua
morte em março de 2013 e a vitória de Maduro por uma margem percentual pequena
frente ao candidato da direita, deflagrou-se um conjunto de ações para
desestabilizar a economia e a tomada de poder, centralizada no desabastecimento
de alimentos, remédios e insumos em geral agravado em muito pela condição
histórica, que se manteve inclusive nos governos Chávez, de importação de 70% a
80% de todo consumo na Venezuela. Desde 2014, a inflação de aproximadamente 50%
e a polarização mais acirrada – decorrente da vitória da oposição ao governo,
que conseguiu obter a maioria nas eleições parlamentares de 2015 – alimentam na
oposição, mesmo fragmentada, a concretização de um golpe político enraizado na
insatisfação do povo e de parte da classe média. Este golpe encontrou guarida
no parlamento venezuelano, na última semana, quando este aprovou o processo de impeachment contra o presidente Maduro
por supostamente “violar a Constituição do país e destruir a economia do país”
(qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência...), mesmo sem ter
jurisprudência a esse respeito, uma vez que, conforme a Procuradoria Geral, a
Constituição prevê esta possibilidade apenas para o vice-presidente e para os
ministros. E a lição que não pode ser
transplantada, mas que metodologicamente poderia orientar o Brasil, é que
tratando de forma diferente os diferentes e visando atacar os problemas gerados
por governos extremamente excludentes, e subordinados servilmente à
macroeconomia, ao mesmo tempo em que gera uma concentração de capital sem
precedentes inversamente proporcional aumenta a fome, o desemprego, a epidemia
de doenças simples de serem controladas e em consequência a descrença na
humanidade. A saída para os nossos problemas não pode vir de fora, mas do
próprio movimento de luta enquanto classe, no caminho que “se faz ao andar” para
a construção de outra história, social e educacional.