Em Cada coisa a seu tempo tem seu
tempo o poeta Fernando Pessoa escreve:
Cada coisa a seu tempo tem
seu tempo.
Não florescem no inverno os
arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
Esses versos nos remetem ao
posicionamento romantizado tanto na arte como na educação em relação à
imaginação infantil. Muitos autores colocam nas crianças capacidades inatas
ligadas, por exemplo, à criatividade. Rechaça-se a escola, pois nela estariam
os exterminadores de um processo lúdico grandioso que os pequenos supostamente
teriam consigo. Discutindo estas questões encontra-se a pesquisadora Maria Cláudia Saccomani que possui graduação em pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É
mestre em Educação Escolar pela mesma Universidade. É integrante do grupo de
pesquisa Estudos Marxistas em Educação. Atualmente desenvolve como doutoranda
sob a orientação do Prof. Dr. Newton Duarte suas pesquisas sobre o
desenvolvimento da língua falada e escrita na educação infantil na perspectiva da
psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica.
Sua
dissertação de mestrado destinou-se ao estudo da criatividade na arte e na
educação escolar à luz de Georg Lukács e Lev Vigotski e é sobre ela que a
pesquisadora nos fala nesta entrevista.
Confiram:
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo
em Reverso - Quais foram as demandas que a levaram a pesquisar: “A CRIATIVIDADE
NA ARTE E NA EDUCAÇÃO ESCOLAR: uma contribuição à pedagogia histórico-crítica à
luz de Georg Lukács e Lev Vigotski”?
MARIA
CLAÚDIA SACCOMANI – Constatamos
uma falta de clareza no âmbito educacional acerca do que seja criatividade e
como essa capacidade humana se desenvolve. Identificamos uma generalizada
aceitação da criatividade como um dom ou potencial individual inato que se
desenvolve por meio de relações espontâneas com o ambiente
cultural, não necessitando da transmissão sistemática do conhecimento e até
mesmo a ela se opondo. Para as pedagogias hegemônicas, ensino e criatividade
são compreendidos como polos que se excluem, sem qualquer movimento
dialético. Nesse sentido, defendemos a necessária superação de
ideias que apresentam o ato criativo como uma expressão livre e natural do
psiquismo humano. Nosso objetivo reside em mostrar que a criatividade não é uma
propriedade psíquica alheia à realidade concreta, mas sim um comportamento
complexo culturalmente formado, dependente do trabalho pedagógico orientado
pelo que há de mais desenvolvido na cultura. Assim, a educação escolar promove
a criatividade quando cumpre sua função de socializar, de modo sistematizado e
planejado, o legado cultural em suas máximas expressões, como postula a
pedagogia histórico-crítica.
Tecendo
em Reverso – Por conta de concepções equivocadas acerca da educação infantil,
muitos professores tratam de arte na sala de aula, como para preencher um
espaço com desenhos e atividades empobrecedoras. De que forma a arte enviesada
em seu contexto histórico e crítico pode promover a emancipação humana?
MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – As diferentes
concepções de educação infantil e de desenvolvimento humano presentes no campo
educacional corroboram em práticas pedagógicas que pouco contribuem para a
organização do trabalho pedagógico nesse segmento de ensino. Por um lado, há
ideários centrados numa perspectiva antiescolar, que entendem a criança como
protagonista do trabalho pedagógico e a criatividade como fruto de interações
espontâneas com a cultura, que seria prejudicada pelo trabalho diretivo e
intencional do professor. Por outro, há um desconhecimento sobre o que é arte e
qual o seu papel na formação humana, o que por sua vez, resulta em práticas
pedagógicas estruturadas a partir de atividades mecânicas e monótonas, que não
estão em consonância com o período de desenvolvimento em que as crianças se
encontram, nem tampouco são promotoras
do desenvolvimento da sensibilidade estética.
Nesse
sentido, cabe questionar qual o critério utilizado, pelo professor, para
selecionar esse desenho (atividade) e não outro(a)? Quais objetivos e conteúdos
estão presentes neste planejamento pedagógico? Defendemos, na perspectiva da
pedagogia histórico-crítica, a socialização da cultura acumulada historicamente
em suas máximas expressões, desde a mais tenra idade. Assim sendo, a
organização do ensino na educação infantil deve ter como norte a produção das
máximas potencialidades humanas
objetivadas na cultura em cada aluno. Como patrimônio cultural,temos ao lado da ciência e filosofia, as
objetivações artísticas, que são produtos do trabalho dos seres humanos e,
portanto, não podem ser propriedade apenas da classe dominante.
A
educação escolar deve colocar os alunos em contato com aquilo que não tem
acesso em sua vida cotidiana, ampliando seus horizontes para além daquilo que
já está dado. Entendemos que a escola deve promover a consciência estética,
garantindo o contato das crianças com as
expressões artísticas desde os primeiros anos de vida. Esse contato, quanto
antes for oportunizado, pode ser determinante da futura relação do indivíduo
com o patrimônio cultural artístico.
O
professor, nesse sentido, precisa ter uma clara compreensão do que é arte, sua
necessidade, papel e significado na formação dos seres humanos. Questão
complexa para ser explorada de forma sintética. Grosso modo, é preciso
compreender que os sentidos humanos pressupõem uma base biológica, mas não se
limitam a ela, ou seja, pela apropriação da cultura, deixam de ser tão somente
biológicos e passam a ser essencialmente sociais. Como bem explicou Marx, a
formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história humana até o
presente momento. Assim sendo, desenvolvem-se no decorrer do processo
histórico-social. Portanto, os sentidos, as sensações e a percepção precisam
ser formadas e educadas em todas as crianças. Lutar contra a alienação,
tendo como direção a emancipação humana, significa possibilitar que as
conquistas da humanidade se objetivem na particularidade da vida dos sujeitos.
Sabemos que a escola, por si só, não transforma a realidade, mas forma e
transforma o psiquismo dos sujeitos que, em sua ações concretas, almejam
fazê-lo.
Tecendo
em Reverso – A imaginação infantil é altamente apreciada pelos pais, e até
mesmo por professores. Coloca-se a escola como um local onde a criança terá sua
criatividade decepada pelo modo de ensino. Como transformar tais concepções
para o avanço de uma atuação mais sólida dos professores que garantirá o
aprendizado dos clássicos pelos alunos?
MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – É bastante
disseminada a ideia de que as crianças têm uma rica imaginação e a escola, ao
transmitir conhecimentos, acaba por atrofiar essa capacidade. Porém,
baseando-se em Vigotski, a professora Lígia Márcia Martins em seu livro “O
desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar – contribuições à luz da
psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica” mostra-nos que
esse é um equívoco conceitual, pois se o desenvolvimento da imaginação fosse
mais fértil na infância que na idade adulta, este seria um curso contrário à
concepção de desenvolvimento na medida em que a imaginação seria uma
função psíquica com processo “involutivo”, isto é, iniciaria na infância em sua
máxima plenitude e caminharia em direção ao seu fim e, portanto, não teria o
efeito de desenvolver-se. Em contrapartida, evidenciamos que a imaginação é uma
função altamente complexa, dependente do pensamento abstrato.
Sem
o ensino sistematizado e orientado por conteúdos não cotidianos, conteúdos clássicos, não há abstração e, na
ausência desse pensamento, não há imaginação e criatividade. Somente com
liberdade interna de pensamento, o indivíduo pode romper com aquilo que
memorizou, transformando a imagem do que existe em nome de algo que possa vir a
ser. Para criar algo novo, faz-se necessário a apropriação daquilo que já existe!
Com
efeito, confunde-se rica imaginação infantil com as explicações
fantasiosas que a criança constrói sobre a realidade baseadas nos limites do
desenvolvimento de sua consciência e de seu pensamento. As crianças, em suas
explicações, desconsideram (porque ainda não conhecem!) as leis objetivas que
regem a realidade concreta. Essas explicações infantis, por mais encantadoras
que pareçam aos olhos dos adultos, precisam ser superadas em direção ao
desenvolvimento do pensamento conceitual.
Ademais,
é comum adjetivar a brincadeira de papéis (jogo protagonizado ou faz de conta)
como máxima expressão da imaginação infantil, como um momento em que a criança
se afasta da realidade para vivenciar o “mundo da imaginação”. Consideramos que essa ideia é um
desconhecimento sobre o desenvolvimento psíquico em geral e, em especial, sobre
o papel da brincadeira no desenvolvimento infantil. A psicologia
histórico-cultural nos mostra que a brincadeira é uma atividade em que a
criança amplia seu conhecimento sobre o mundo, e não uma atividade em que se
distancia dele. A partir de Vigotski, podemos dizer que não é a imaginação que
impulsiona os jogos simbólicos, mas é a atividade da brincadeira que exige
processos imaginativos, visto que conclama, por sua estrutura, papéis e
situações imaginárias, que por sua vez, partem da vivência concreta da criança
com conteúdos determinados pela percepção que ela tem do mundo objetivo e não
de modo alheio à realidade concreta.
Entendemos
que a brincadeira é, de fato, uma atividade essencial ao desenvolvimento
infantil. Na educação escolar, quando devidamente orientada, representa um
grande salto qualitativo nos conhecimentos que a criança tem sobre o mundo.
Entretanto, não se pode perder de vista que este é o início do desenvolvimento
da imaginação e não sua máxima expressão.
É preciso, pois, superar os ideários pedagógicos que compreendem a imaginação
e a criatividade em suas manifestações aparentes para que os professores, por meio de suas ações
concretas, possam lidar com o fenômeno da criatividade avançando na direção da
captação de sua essência.
Tecendo
em Reverso – No seu trabalho lemos: “O psiquismo humano é produto social e é
por isso que a pedagogia histórico-crítica defende a educação escolar como
espaço privilegiado para o desenvolvimento humano, para a produção da
humanidade em cada aluno”. Como você avalia hoje a escola em face ao modo de
produção capitalista?
MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Em ligação com a
pergunta anterior, é preciso destacar que, dadas as condições de vida e
educação na sociedade contemporânea, grande parte das pessoas não alcança
patamar superior de desenvolvimento psíquico, ou seja, não chega a desenvolver
o pensamento por conceitos e, consequentemente, a imaginação não se
desenvolverá em plenitude. Assim sendo, em face da alineação da sociedade
capitalista, nem todas as pessoas são imaginativas. A falta de imaginação, portanto,
não pode ser explicada à luz da subjetividade individual, mas sim como uma
expressão psicológica da alienação, visto que o sujeito é desprovido das
condições de vida e educação requeridas ao seu desenvolvimento psíquico.
A
criatividade não resulta de mecanismos inatos e hereditários, mas desenvolve-se
por meio da apropriação da cultura. Trata-se de um desenvolvimento
histórico-cultural e, portanto, depende da produção na subjetividade de cada
aluno daquilo que já foi produzido pela humanidade no decorrer da história. É
preciso, pois, que a escola cumpra sua função precípua: a transmissão dos
conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos em sua máxima expressão.
Tecendo
em Reverso – No processo das traduções as leituras de Vigotski no Brasil sempre
foram interpretadas ao sabor das circunstâncias, ou seja, nem sempre a teoria
original foi respeitada em seu método. Ao seu ver qual a grande contribuição do
psicólogo russo para a educação brasileira?
MARIA CLAÚDIA SACCOMANI – Zoia Prestes, em sua
tese de doutorado, discute sobre as obras de Vigotski traduzidas para a língua
portuguesa e aponta que as traduções da obra vigotskiana demonstram inúmeros
equívocos (propositais ou não) que modificam essencialmente a compreensão de
conceitos da teoria e destorcem as ideias do psicólogo russo ao sabor das
circunstâncias, como você bem colocou na questão. Esse problema também foi
apontado pelos estudos do Professor Newton Duarte, quando denunciou os desvios das ideias vigotskianas
contidas em trabalhos que se propuseram a divulgar a obra do autor.
Ao
meu ver, a grande contribuição de Vigotski reside na tese da natureza social do
psiquismo humano. Quando o psicólogo russo aponta o papel dos signos na transformação das funções psíquicas
elementares na direção das funções psíquicas superiores, evidencia que o
desenvolvimento é um processo mediado e subjugado ao ensino. Essa teoria
psicológica ao evidenciar que o desenvolvimento não é natural e espontâneo, mas
dependente da apropriação da cultura, sinaliza a valorização do ato de ensinar
e, consequentemente, a valorização do trabalho realizado pelo professor como
aquele que, diferente do que as pedagogias hegemônicas afirmam, ensina!!!
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