terça-feira, 26 de abril de 2016

Ivana Jinkings

No dia 07 de abril de 1990 a Folha de São Paulo publicava em seu caderno Letras a matéria: “Textos sobre o marxismo viram sucata nas livrarias em São Paulo”. Em meio a frases como esta: “No Brasil, intelectuais e editores ainda não se deram conta, mas desapareceu o grande público para Marx” o artigo curiosamente também apontava o fato de Lênin ser à época o autor marxista mais traduzido no mundo. Apresentado pela reportagem como famoso, mas pouco lido, Karl Marx foi considerado no artigo como um “autor difícil”.
Pouco tempo depois Ivana Jinkings fundaria em São Paulo a Boitempo Editorial, proposta que começara com seu pai no Pará, o intelectual comunista Raimundo Jinkings. A paraense  apropriou-se de uma herança marxista de bons livros para trazer ao público brasileiro, não só acadêmico, mas também aos amantes do pensamento crítico e dialético os  grandes títulos do marxismo mundial.
Como no poema de Drummond “De curva em curva” a  Boitempo completou em 2016 os seus 20 anos. Com nomes como : István Mészáros, José Paulo Netto, Ricardo Antunes, entre outros, a editora erige-se hoje ao patamar dos grandes projetos editoriais da esquerda brasileira.
O autor de Fausto já dizia na velha Alemanha que a poesia se deve às circunstâncias. Entendendo texto como contexto a teoria de Marx atendeu às exigências históricas de seu tempo e, também do nosso.Traduzir, editar e ler esta obra está na pauta dos nossos dias.

Abaixo a entrevista com Ivana Jinkings:

                                                                     Foto: Ricardo Stuckert

Tecendo em Reverso – A Boitempo tem se destacado no Brasil por ter como alvo a publicação de livros marxistas. Sabe-se que infelizmente este nicho ainda se restringe a um público mais acadêmico. Quais as propostas da editora para popularizar a leitura marxiana?

IVANA JINKINGS – Nós percebemos que a comunicação com o público é essencial no processo de formação e ampliação do público-leitor e por isso investimos fortemente em eventos, imprensa e redes sociais (a Boitempo é a editora brasileira com o maior número de inscritos em canal próprio no YouTube) com o intuito de levar a obra e o pensamento dos nossos autores para mais pessoas. Isso é positivo não apenas para a editora, que acabou se consolidando como “a casa do pensamento crítico”, mas também para o leitor, que ganha outros textos e outras formas de acesso às obras e ao pensamento dos autores que publicamos, já que as gravações e os textos produzidos nesses eventos são depois disponibilizados no blog http://boitempoeditorial.wordpress.com. Muitos deles estão entre os mais importantes escritores contemporâneos, nacionais e internacionais. É o caso do britânico David Harvey, do cubano Leonardo Padura, do esloveno Slavoj Zizek, do húngaro István Mészáros, e dos brasileiros Chico de Oliveira, Leandro Konder, Maria Rita Kehl, Paulo Arantes, Raquel Rolnik e Ruy Braga, entre muitos outros que hoje atraem multidões aos nossos eventos (via de regra, gratuitos). Como forma de popularizar as obras de Marx e Engels temos adotado também a prática de promoções periódicas e a participação em feiras acadêmicas nas quais oferecemos os títulos com até 50% de desconto. Outra via foi dispor os livros do nosso catálogo no formato digital, o que permite uma diminuição significativa no preço de capa – os preços de nossos títulos digitais passaram a custar até 65% menos do que a versão impressa, uma redução acima da média brasileira em termos relativos e absolutos.

Tecendo em Reverso – As campanhas publicitárias de incentivo à leitura no Brasil, bem como os livros são enviesados numa perspectiva mercadológica e, muitas vezes imbecilizante em relação ao seu público alvo, ou seja, as crianças. De que maneira a editora ao lançar o selo infantil Boitatá pretende abordar um conteúdo literário progressista e engajado com a realidade?

IVANA JINKINGS – Já faz alguns anos que vivemos uma verdadeira ebulição política e social no Brasil. Manifestações nas ruas tornaram-se comuns recentemente, tanto de direita quanto de esquerda, e nós temos visto os movimentos sociais cada vez mais organizados, clamando por cidadania, por um maior espaço de participação política. Há um radicalismo no país e as crianças não passam incólumes a isso. Elas veem política na TV, na internet, e querem saber, querem entender, participar da discussão. Mas como explicar para uma criança de oito anos como se organizam as eleições, o que é impeachment, ditadura, corrupção etc.? Ou: o que é feminismo, o que são classes sociais? Enfim, são esses conceitos básicos que a coleção Livros para o amanhã” procura explicar, apostando na inteligência, no questionamento e no senso de justiça de seus pequenos leitores. Neste ano estrearemos em ficção para crianças, com uma autora espanhola e uma brasileira.


                                                       Ivana e os trabalhadores da Boitempo
                                                                Foto: Arquivo pessoal da editora.

Tecendo em Reverso – Na sua concepção quais foram as mudanças mais significativas ocorridas desde a criação da editora no cenário político brasileiro?

IVANA JINKINGS – A editora começou em 1995, com a publicação de um texto inédito de Stendhal sobre Napoleão que revela seu lado “historiador político”. A ideia inicial era publicar obras de indiscutível relevância que fossem inéditas no Brasil ou até editadas, mas esquecidas e esgotadas há muito tempo. Aos poucos a Boitempo foi se firmando como editora de livros de ciências humanas, e a atuação no campo da ficção e de obras raras foi de certo modo “solapada” pelas urgências teóricas do nosso tempo. Fizemos a opção por um catálogo de fundo consistente - movimento contrário ao da maioria das editoras, que acabam relegando seus próprios livros ao esquecimento por estarem sempre em busca de um novo best-seller. O mercado não era tão concentrado há vinte anos, as editoras estrangeiras e os grandes grupos não tinham ainda entrado no Brasil como agora ocorre.
No cenário político, passamos pelos trágicos anos FHC, com inflação e taxas de juros altíssimas; pelos dois mandatos de Lula, que representaram relativos avanços na economia e inclusão social, com crescimento econômico e redução da pobreza; e cá estamos no segundo mandato Dilma, que ora corre sério risco de ser interrompido pelas forças políticas mais retrógradas do país. Chamar o impeachment da presidente Dilma ou dar pouca importância a ele é um diversionismo, as esquerdas precisam se posicionar urgente e firmemente contra esse atentado à democracia. E somente depois pensar numa pauta única contra o ajuste fiscal, contra a Agenda Brasil, a lei antiterror, as terceirizações e todos os retrocessos propostos. Seria a melhor resposta das forças populares à ofensiva da direita e uma resposta – pela esquerda, nas ruas – à capitulação de um governo que traiu seus eleitores e sua base social. Pois embora os governos do PT tenham tirado da miséria 50 milhões de brasileiros, eles afagaram o quanto puderam os “mercados”, a imprensa golpista e o que há de pior no cenário político. A despeito das imensas dificuldades, precisamos agora cerrar fileiras contra a direitização do Brasil.

Tecendo em Reverso – Como se dá hoje o processo da escolha de autores pela editora e, como se dialoga diante de divergências tão grandes entre a esquerda brasileira?

IVANA JINKINGS – Temos uma instância interna, formada por integrantes do editorial, das equipes de comunicação e do comercial, e um conselho editorial formado por alguns dos coordenadores das nossas coleções que se reúne periodicamente. Buscamos compor o catálogo da Boitempo de forma não sectária, contemplando autores de diferentes linhas do pensamento crítico.

Tecendo em Reverso – Alguns clássicos de Karl Marx já foram traduzidos em sua íntegra pela editora. Quais serão as próximas traduções?

IVANA JINKINGS – Os próximos lançamentos da coleção serão O capital, livro III; O roubo da madeira, de Marx com texto introdutório de Daniel Bensaid; e A dialética da natureza, de Engels.



terça-feira, 12 de abril de 2016

Ruy Medeiros - História Local e Memória: Limites e Validade.

Ruy Medeiros é Mestre e Doutor em Linguagem e Sociedade pela UESB. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador percorre pelas áreas de História do Direito, Direito do Trabalho e Movimentos Sociais.
Em sua mais recente obra: História Local e Memória: Limites e Validade publicada pela editora Librum o autor faz um amplo estudo tendo como mote a cidade de Vitória da Conquista (BA).

Confiram a entrevista:

                                                                                    Foto: Arquivo pessoal do autor.


Tecendo em Reverso - Como se dão os estudos sobre a história das localidades brasileiras?


RUY MEDEIROS – Isso ocorre com inúmeros obstáculos: dificuldade de acesso às fontes, ausência de aprofundamento metodológico (há certas especificidades do local – até mesmo saber o que é local – que devem ser observadas), dificuldade de destrinchar os nódulos que compõem o local, dispersão de arquivos ou falta desses. A história local, tem sido realmente local (isto é, escrita por não historiadores de ofício) e os acadêmicos de história preferem temas ao invés da história de um Município ou de uma região e isso dificulta o surgimento de modelos, importantes para a escrita da história.


Tecendo em Reverso - Quais foram as maiores dificuldades em se pesquisar a história local de Vitória da Conquista?


RUY MEDEIROS - Pesquisar a história de localidades (s) apresenta dificuldades. A maior delas é a escassez de fontes reunidas. Nem toda localidade possui arquivo público. Algumas possuem mero depósito de documentos. As fontes de origem privada escasseiam com a desagregação familiar e jornais nem sempre existem ou suas coleções são incompletas. A busca do local tem que ser feita igualmente em outros lugares, às vezes fora do Brasil. Há fontes valiosas para a História de Vitória da Conquista, em Portugal, Salvador, Belo Horizonte (neste último lugar, o APM), com documentos que interessam ao movimento de conquista do território.


Tecendo em Reverso - Sabe-se que no interior do Brasil há um grande número de cronistas locais que não tem formação de historiador. Qual a sua avaliação do trabalho deles e sua importância em relação aos registros textuais de determinada região?


RUY MEDEIROS - Os historiadores locais fazem sobretudo “memória” e nesse mister são importantíssimos. Para a História, geralmente são pontos de partida, com as informações que registram e com os documentos que transcrevem em seus livros. Há documentos que só nos chegaram a partir desses memorialistas. Alguns tiveram (têm) o cuidado de analisar, propor explicações, interpretar... Geralmente fazem trabalho marcadamente ideológico, mas o leitor saberá interpretá-lo e retirar de seus escritos muita coisa interessante. São laços de continuidade entre passado e presente.


Tecendo em Reverso - Em seu trabalho, lemos: "Forte é o mito que situa a origem do arraial donde Vitória da Conquista nasce: uma promessa aceita e atendida, ave Maria, gratia plena. O culto à Nossa Senhora da Vitória ou Santa Maria da Vitória, tem início quando o papa Pio V criou a festa de Nossa Senhora do Rosário para comemorar a vitória da frota cristã contra os turcos na batalha naval de Lepanto em 1751. Nossa Senhora da Vitória". Como se estabelecem as relações entre religião e fundação e qual a real importância da primeira sobre a segunda?


RUY MEDEIROS - Trata-se de uma relação complexa,  sobretudo num Estado não laico. Muitas cidades nasceram ou se desenvolveram em torno de um templo católico (fundação), o pensamento religioso estabelece mitos fundadores, a sociabilidade desenvolve-se no templo ou em seu redor, a igreja tece família (sacramento do matrimônio), compadrio (batizado), ajuda a reproduzir o poder, etc.  Em Vitória da Conquista, o mito fundacional da cidade é católico, há padres que foram chefes de família e proprietários rurais. Sobretudo o mito fundacional justifica poder e herança. O fundador de Vitória da Conquista aparece como aquele que foi agraciado por Nossa Senhora com a Vitória contra os nativos da região (mongoiós).


Tecendo em Reverso - Na perspectiva de historiador quais os dilemas que se encontram entre "história local" e "história universal"?


RUY MEDEIROS - Não há univocidade no termo história local. Com a expressão, designa-se a história de localidades escrita por não historiadores de ofício. Mas também se designa a história de localidade, de região ou de país, em oposição ao universal (universal, conhecimento a partir de ciência, ou história global, “do mundo”). O problema está em que ao tratar cientificamente o local, deve-se tratar o universal, porém em níveis ou aprofundamento diversos. Essa ligação pode aparecer forçada (como em alguns autores) ou como mero vínculo para não parecer que o local não está no mundo. Em certo sentido, toda história é universal (o homem no tempo) e isso conduz a que se investigue o próprio tempo, seu ritmo e demoras, na forma local. Como se diferencia o tempo social da vila daquele da metrópole! Dinâmicas internas e externas se complementam; onde e por que se encontram (na inteligência) implica não apenas em saber que existe um só mundo, onde estão os diversos habitats nodulados política, social e culturalmente, pois o local é uma realidade com articulações específicas e com o mundo. 



                                                                           Foto: DIvulgação