No livro: A Sociedade do Espetáculo o autor Guy Debord afirma : “À medida que a necessidade
se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o
mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o
seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono”.
A anestesia imposta por uma mídia ainda
carente de imparcialidade e muitas vezes adepta do chamado jornalismo
declamatório produz cada vez mais um público de gosto mediano e ideias
conservadoras.
Publicado pela Navegando Publicações o livro Imprensa,
gêneros discursivos e o tempo capitalista instiga o leitor a
uma reflexão sobre a mídia em tempos de capital.
Conversamos com os
autores Carlos Lucena e Lurdes Lucena sobre a Navegando Publicações e a mais recente obra lançada pela editora.
Carlos Lucena é cientista
social pela Puccamp. Possui doutorado em Filosofia e História da Educação pela
Unicamp e pós-doutorado em Educação pela Ufscar. Atualmente é um dos editores
da Navegando Publicações e professor na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Uberlândia.
Lurdes Lucena é mestre em
linguística pela Unicamp e possui doutorado em Educação pela Universidade
Federal de Uberlândia. É professora nas áreas de gestão pública, comunicação e
educação. A pesquisadora também faz parte do Grupo de Pesquisa: Trabalho,
Educação e Formação Humana pelo Cnpq.
Confiram a entrevista:
Foto: Arquivo pessoal do pesquisador.
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo
em Reverso - Como nasceu a ideia da Navegando e a concepção de distribuição
gratuita das obras (e-books)?
CARLOS LUCENA E LURDES
LUCENA - A Navegando
Publicações surgiu de uma discussão no interior do grupo Histedbr (História, Sociedade e Educação no Brasil) voltada à dificuldade de publicação dos
membros do grupo de pesquisa de suas produções. Essas dificuldades se
manifestavam principalmente em virtude do tempo para a publicação de livros e
os custos para a referida publicação. Percebíamos que teses de doutorado,
dissertações de mestrado e relatórios de pesquisa acabavam “esquecidas” nas
bibliotecas sem a referida socialização e divulgação dos seus resultados. A
“Navegando Publicações” surgiu em 2010 apenas como um espaço de divulgação de
trabalhos científicos. Os autores conseguiam o ISBN para a publicação de suas
obras através de suas instituições de origem ou de forma autônoma na Biblioteca
Nacional. Algumas obras conseguiram o ISBN pela Faculdade de Educação da
Unicamp. Por volta de 2012, a “Navegando Publicações” passou a produzir em
parceria com outras editoras. No ano de 2016, a “Navegando Publicações”
conseguiu seu próprio CNPJ e o cadastro na Biblioteca Nacional. Com isso conseguimos
rapidamente viabilizar um conjunto de produções de alto nível de diferentes
pesquisadores brasileiros e do exterior. Apesar da sua transformação em empresa
privada, mantemos o princípio de produção de e-books gratuitos, mantendo a
essência da “Navegando Publicações” como espaço de socialização do
conhecimento. Os custos de publicação para os autores são referentes ao
processo de produção do e-book, tais quais, capa, revisão, editoração,
diagramação etc. Trabalhamos para em breve disponibilizar aos autores a
produção de livro impresso por demanda. O que percebemos com a disponibilização
de e-books gratuitos é o elevado número de acessos no exterior, merecendo
destaque, Estados Unidos, França e Rússia.
Tecendo
em Reverso - Dentre os lançamentos de editora encontra-se: Imprensa,
gêneros discursivos e o tempo capitalista. Em que medida a obra contempla
as discussões da mídia orientada pelo mercado?
CARLOS LUCENA E LURDES
LUCENA - Nossa intenção
ao desenvolver este livro foi demonstrar a historicidade da imprensa em suas
mediações com a sociedade e o mercado capitalista. O comparativo entre o final
do século XIX e a segunda metade do século XX objetivou demonstrar o contínuo
processo de aceleração do tempo da sociedade capitalista manifesta naquilo que
bem exemplificou David Harvey, da tese da compressão entre o espaço e o tempo.
Entendemos que o mercado nada tem de sobrenatural e inexplicável. O mercado é
uma construção humana e histórica acirrado pelo nível de conflitos e lutas de
classes em seu tempo. Ao fazermos esta afirmação, tomamos como referência que
tanto a mídia como a sociedade são expressões sociais dinâmicas que se chocam,
contradizem e se reproduzem no seu tempo. Isso implica perceber que ambos não
são neutros, mas sim traduzem as aspirações do seu período histórico.
Tecendo
em Reverso - No capítulo 2 da obra você e Lurdes discorrem sobre as crises do
modo de produção capitalista. Quais são as principais crises enfrentadas hoje
pela imprensa brasileira?
CARLOS LUCENA E LURDES
LUCENA - Em nosso entendimento
as crises cíclicas do capitalismo são elementos fundamentais para a
interpretação da dinâmica da sociedade em que vivemos. O entendimento de Marx
ao qual toda em vez em que a humanidade revoluciona suas formas de produzir,
também revoluciona as formas de viver, perceber e sentir norteia toda a nossa
interpretação. Logo, o entendimento de uma crise cíclica impacta na
interpretação de um conjunto de relações que transcendem os movimentos da
economia tanto em âmbito local, como regional, nacional e internacional.
A imprensa é o espaço da contradição absoluta. Nela se expressam as diferentes
concepções de sociedade existentes em seu tempo. Ela é a negação absoluta da
neutralidade e a expressão da intencionalidade. A humanidade não se manifesta sobre
qualquer assunto sem intencionalidade. Ela sempre quer chegar há algum lugar. A
imprensa brasileira está em crise porque a sociedade brasileira também o está.
Os períodos de vazio político tal qual vivenciamos atualmente é um grande risco
para o futuro da própria liberdade de imprensa e da democracia brasileira.
Infelizmente, correndo o risco que nossa interpretação possa cair na armadilha
do determinisno histórico, os períodos que se seguiram ao bonapartismo político
foram compostos em várias oportunidades pela construção de ditaduras civis e
militares. Esperamos que o Brasil não siga para este caminho...
Tecendo
em Reverso - Como as propagandas notadamente de cunho ideológico, muitas vezes
conservador coadunam-se com os ditames do capital?
CARLOS LUCENA E LURDES
LUCENA - O entendimento
da inexistência da neutralidade da propaganda é fundamental para interpretá-la.
A propaganda é a expressão científica elaborada do fetichismo da mercadoria em
larga escala. A sociedade capitalista marcou uma forma societal produtiva à
qual tudo deveria ser vendido, aquilo que denominamos como coisificação do ser
social. Marx e Engels, ainda no século XIX, perceberam o movimento em curso que
estava presente na sociedade capitalista. O entendimento ao qual pelo
“trabalho”, categoria fundamental expressa pela mediação da humanidade com a
natureza, a diferenciava dos animais, foi condição essencial para uma profunda
crítica dos rumos sociais tomados pela sociedade. A propaganda, dentro desta
perspectiva foi a forma mais elaborada para garantir o predomínio do valor de
troca sobre o valor de uso das mercadorias. Ela representou a expressão maior
de uma luta pela conquista das mentes e da subjetividade de consumidores
através da construção artificial e ilusória da felicidade como sinônimo de
poder de consumo. Nessa relação fetichizada, a propaganda contribuiu para que
as mercadorias adquirissem vida própria, transformando-se em uma abstração à
própria humanidade. Padrões de beleza, felicidade, consumo foram difundidos em
âmbito internacional, complexificados pela Terceira Revolução Tecnológica, algo
que nos arriscamos a denominar como o novo eurocentrismo informático.
Parece-nos que ainda está em aberto a grande questão referente ao presente e ao
futuro da humanidade: o consumismo propagandístico eleva a felicidade das
pessoas? Acreditamos que não.
Tecendo
em Reverso -No livro vocês analisam a linguagem utilizada em alguns
classificados do século XIX em que negros à época da escravidão eram vendidos e
trocados com muita naturalidade pela imprensa escrita. Como as pessoas são hoje
“vendidas” nos classificados?
CARLOS LUCENA E LURDES
LUCENA - A historicidade
é fundamental para a interpretação dos processos sociais do seu tempo. Quando
analisamos o comparativo entre os dois séculos, vemos que questões vergonhosas
como a escravização de um ser humano por outro são tratadas com naturalidade
pela imprensa escrita. Uma análise cuidadosa desses classificados demonstra que
os “Senhores de Escravos” sequer sabiam a idade dos escravos. Da mesma forma,
demonstra também a fuga como a luta e resistência dos escravos contra uma
situação humilhante e desumana, algo que nos arriscamos a dizer como uma
vergonha da humanidade. O que se percebe na leitura e interpretação desses
classificados é a naturalização da
escravidão sustentada pelas ideologias e a Constituição Brasileira. Tanto ó é
que em vários classificados a recompensa era prometida quando aqueles escravos
que fossem capturados fossem entregues nas cadeias da cidade de Campinas e
região. A fuga era entendida como uma espécie de crime em seu tempo. A
escravidão era legalizada não só no Brasil como em diversos países no exterior
que a adotaram. Marx contribui com essa questão ao afirmar que as Leis nunca
foram neutras, mas sim a expressão da luta e da hegemonia de classes em um
período histórico. Em debate com Hegel demonstrou que as Leis, tal qual o
Estado, não eram sobrenaturais, mas sim construção humana que imputavam a
dominação de uma classe social sobre outra. Elas também carregam em seu interior
o caráter de mediação de classe. Quanto maior o nível de lutas de classe no seu
tempo, maior a construção de Leis que visem manter a sociedade sob controle. Os
classificados de jornal sobre a escravidão nesse período tinham essa
prerrogativa. A região da Campinas era tida como uma das mais violentas e
algozes com os escravos em todo o Brasil. Mesmo com o fim da escravidão, esse
traço se manteve presente na região. Quase setenta anos após a abolição da
escravatura, existiam clubes na cidade que não aceitavam negros entre os seus
associados. Somou-se a essa questão a luta pelos postos de trabalho entre os
trabalhadores negros e os imigrantes. Muitos imigrantes intensificaram a
discriminação dos trabalhadores libertos negros como estratégia para garantir
os seus próprios postos de trabalho nas lavouras da região.
A naturalização dessas relações foi constante no
meio midiático. Apesar de no interior da imprensa existir espaços de
resistência e contradição, o que se percebe é a predominância da difusão
contínua de valores de mundo de uma sociedade mundializada, cuja eficiência e
relevância se encontram no hemisfério norte do planeta. Ocorre em âmbito
internacional aquilo que denominados como espetáculo da mídia que paralisa os
expectadores dada a força e impacto das imagens. As imagens são apresentadas
como desprovidas de história e sentido. A negação da história apresenta o mundo
como se fosse apenas o presente, quando na realidade ele não o é. O espetáculo
da mídia ao mesmo tempo em que horroriza no presente provoca o esquecimento
minutos após. O que se visa é a construção de um mundo caótico e sem
alternativa, cuja saída se apresenta com o discernimento do autoritarismo em
escala internacional. A construção
linguística simples acompanhada da elaboração de gêneros discursivos também
simples transmite a sensação de uma compreensão neutra do mundo a sua volta,
quando na realidade, o ser social cada vez mais se estranha de sua própria
condição de existência.
O nível de estranhamento e alienação é tão intenso
na sociedade que o ser social tem dificuldade em compreender quem ele mesmo o
é. Aceita como natural um conjunto de condições que são humanas por excelência.
Tem a sensação de ser livre e manipulado quando na realidade está preso em um
conjunto de relações que sequer tem compreensão que existem. Pensam ser livres
enquanto se encontram escravos das fronteiras de dominação social.
Infelizmente, parcela considerável da mídia e da propaganda contribui
significativamente para que esse processo continue, atentando, de forma
significativa, para o empobrecimento brutal dos seres humanos.