Por Juliana Gobbe
Lidiane
Soares Rodrigues é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (
USP) e pós-doutora com estágio no Centro Europeu de Sociologia e Ciência
Política da Sorbonne e da Escola de Ciência Sociais ( CESSP- EHESS- Paris).
Atualmente é professora do Departamento de Ciências Sociais na UFSCar. Como
pesquisadora atua na área de História das Ciências Sociais, História do
Marxismo e Sociologia da Ciência.
Em
2011 defendeu sua tese na USP com o seguinte tema: 'A produção social do
Marxismo Universitário em São Paulo: Mestres, Discípulos e "Um
Seminário" ( 1958-1978).
Em
entrevista ao nosso blogue a pesquisadora discorreu um pouco sobre este
trabalho.
Arquivo
pessoal da pesquisadora.
Tecendo em Reverso –
Como se deu a escolha do tema da sua tese?
LIDIANE
RODRIGUES – Esse tema não existia quando comecei minha pesquisa. Aos poucos eu
propus uma mudança nos termos. Não me interessava o estudo de “intelectuais de
esquerda”, “intelectuais marxistas”, engajamento – termos recorrentes com os
quais a discussão a respeito do marxismo é encaminhada. Pareceu-me, depois de
ler muito, que era necessário definir melhor o que cada um desses termos quer
dizer. Acabei reformulando o projeto e me propus a estudar o processo de
importação da obra de Karl Marx, do campo político para o científico, no espaço
universitário brasileiro. Como este escopo era irrealizável, redimensionei e me
ocupei de São Paulo. Para este objetivo, o “Seminário Marx” revelou-se
estratégico. Sobretudo pois a
bibliografia tinha hábito de tratar a obra dos membros desse seminário como se
estas pessoas nunca tivessem se encontrado para ler juntas. Eu diagnosticava
que era necessário, para dar inteligibilidade à produção desses seminaristas,
figuras que constituíram algumas disciplinas acadêmicas, estudar também o
seminário como grupo.
Tecendo em Reverso-
De acordo com sua pesquisa qual foi a diretriz de leitura de Marx adotada pelos
jovens intelectuais da USP de 1958?
LIDIANE
RODRIGUES – Todos leram Karl Marx sob a diretriz de um filósofo, o prof. José
Arthur Giannotti. Um dos efeitos de sua
posição de “capitão do time” é a presença de um Marx epistemólogo pontilhando
os trabalhos dos seminaristas. Se o método de leitura e as discussões da
Filosofia invadiram outras áreas (História, Sociologia, Crítica Literária), em
contrapartida, também ela era impactada pela agenda de investigação dessas
disciplinas. Nelas, a peculiaridade do desenvolvimento capitalista na periferia
do sistema mundial, particularmente no Brasil, era o eixo temático em torno do
qual todos orbitavam. É interessante notar que o filósofo se ocupou desse
assunto e que os seus colegas elaboraram aprofundadas reflexões de ordem
epistemológicas voltadas para suas áreas específicas.
Tecendo em
Reverso- Em que medida dá-se a atuação
de Florestan Fernandes à época e quais são as
convergências e divergências entre os intelectuais?
LIDIANE
RODRIGUES – Os seminaristas não foram os primeiros leitores universitários de
Marx. Na verdade, Florestan Fernandes, entre outros, já o liam. No entanto, há
duas diferenças nestas leituras. A primeira diferença é a seguinte. Os leitores
anteriores buscavam em Marx a
contribuição deste autor para sua disciplina científica. No caso de Florestan, tratava-se
de estabelecer a “sociologia” de Marx. Como disse na questão acima, o seminário
trilhou outros caminhos. Nada mais distante do que o historiador ler o “Marx
historiador” ou o crítico literário o “Marx literário” – esta segmentação faz
parte da leitura dos seminaristas, mas não a define. A segunda diferença – que penso ser
fundamental – consiste em que os leitores anteriores liam Marx isoladamente e
eles leram em grupo. Isso tem pelo menos duas conseqüências, uma para os
membros do grupo e outra para os que não fizeram parte dele (fossem eles
contemporâneos ou sucessores). Por um
lado, ler em um grupo composto por membros de diversas disciplinas, implica uma
capacidade potencial de difusão da leitura, cada um importando para sua área um
conjunto de textos, uma certa maneira de lê-los, etc. Ignorar isso implica
estar fora de uma certa discussão que definiu durante muito tempo chaves de
entrada na obra de Marx. Ler em grupo, por outro lado, de modo contínuo e
sistemático, foi uma atividade que operou homogeneizando léxico, práticas,
grade de valores e modalidades de excelência intelectual. Grosso modo, a
atividade coletiva de leitura inculcou um espírito de corpo entre eles. Há mais
a dizer a respeito de Florestan e este grupo, mas tornaria esta entrevista uma
aula. O que foi dito é o bastante para assinalar a divisa de propósito na
leitura de Marx, do grupo e do sociólogo.
Tecendo
em Reverso - Na tese você utiliza os conceitos “Marxismo dominante” e “Marxismo
dominado”. Fale-nos um pouco sobre eles.
LIDIANE
RODRIGUES – Quando percebi que estava me deparando com a estruturação do espaço
de leitores universitários de Marx ainda em vigência no Brasil, tentei
classificar os tipos de marxismo praticado pelo grupo e nas disciplinas dos
membros do grupo. Essas duas categorias
denominam dois tipos de “marxismo” encontrados ainda hoje entre sociólogos: o
dominante, senão menos politizado, refratando a política pela fidelidade à
teoria, e, por isso, valorizando enormemente a discussão de autores com legitimidade
teórica no marxismo. Em geral, é praticado pelos agentes mais capitalizados
culturalmente (o que se mensura por origem social dos
alunos/leitores/marxistas, escolas que estudou, etc.). Já o “marxismo
dominado”, refrata a política não na teoria, mas no tema, sendo, por isso, mais
quente e politizado, inclinando-se às pesquisas empíricas. Em geral é praticado
pelos agentes menos capitalizados culturalmente. Esses dois pólos concentram
propriedades sociais simetricamente opostas ainda hoje. Na tese, tinham origem
na trajetória social e no percurso intelectual de Fernando Henrique Cardoso e
Octavio Ianni. Em tempo: afirmo que linhas estruturantes da experiência que
estudei têm vigência atual, pois no momento estou trabalhando com uma população
de 900 marxistas universitários e tenho constatado isso.
Tecendo
em Reverso- Em 1958 o Brasil estava sob a égide do governo de Juscelino
Kubitschek num franco processo de internacionalização da economia. Na cultura,
cinema novo e bossa nova emergiam. Até que ponto este contexto fomentou os
estudos de O Capital?
LIDIANE
RODRIGUES – Decerto esse clima fomentou estudos de Marx. Mas não os estudos de
Marx realizados pelo grupo que investiguei. Esses jovens acadêmicos em início
de carreira empenhavam-se precisamente em se desvencilhar de leituras
excessivamente panfletárias e políticas. Não podiam mesmo fazer outra coisa e
qualquer suspeita de leitura fácil ou panfletária destruiria suas vidas
profissionais. O “impacto” desse clima consistia em rebaixar os partes no Rio
de Janeiro, na avaliação deles, submissos demais aos mandos e desmandos do
Estado. Eles estavam antes interessados em estabelecer uma barreira com o campo
político, tão mais forte e exigente por tratarem do autor que por excelência
faz a mediação desses campos. Tentei, na pesquisa, colocar em dúvida esses
nexos meio apressados das explicações ad
hoc que ligam o “clima” (cujos critérios de elaboração jamais são
explicitados) aos projetos científicos e culturais. Tomando outro exemplo: repete-se ad nauseum que a crise das grandes
narrativas e a atenção aos objetos da micro-história resultam do fim da URSS.
Todos já ouviram explicações desse tipo. De tão repetidas, ninguém se dá conta
do insólito! Só entendemos a multiplicação de temas legítimos da
“micro-história” se fizermos uma boa história social das disciplinas, da luta
dos pesquisadores por fazerem valer seus temas, das linhas de financiamento,
etc. No entanto, é claro, a explicação ad hoc pelo “clima”, “contexto macro
político” é mais palatável. Embora mais popular, eu a considero mais criativa do que séria: afinal inventa
problemas curiosos – teria o marxismo chegado à presidência? Nada disso.
Entender como alguns desses seminaristas se tornaram grandes políticos
implicaria investigar os liames sociais
e nada intelectuais entre os campos políticos e acadêmicos no Brasil, as
veleidades políticas dos intelectuais quando a oportunidade de ir para a
política os alcança, a reestruturação das elites políticas, etc.