terça-feira, 23 de junho de 2015

Lidiane Soares Rodrigues


Por Juliana Gobbe


Lidiane Soares Rodrigues é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo ( USP) e pós-doutora com estágio no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política da Sorbonne e da Escola de Ciência Sociais ( CESSP- EHESS- Paris). Atualmente é professora do Departamento de Ciências Sociais na UFSCar. Como pesquisadora atua na área de História das Ciências Sociais, História do Marxismo e Sociologia da Ciência.
Em 2011 defendeu sua tese na USP com o seguinte tema: 'A produção social do Marxismo Universitário em São Paulo: Mestres, Discípulos e "Um Seminário" ( 1958-1978).
Em entrevista ao nosso blogue a pesquisadora discorreu um pouco sobre este trabalho.



                                                                      Arquivo pessoal da pesquisadora.


Tecendo em Reverso – Como se deu a escolha do tema da sua tese?

LIDIANE RODRIGUES – Esse tema não existia quando comecei minha pesquisa. Aos poucos eu propus uma mudança nos termos. Não me interessava o estudo de “intelectuais de esquerda”, “intelectuais marxistas”, engajamento – termos recorrentes com os quais a discussão a respeito do marxismo é encaminhada. Pareceu-me, depois de ler muito, que era necessário definir melhor o que cada um desses termos quer dizer. Acabei reformulando o projeto e me propus a estudar o processo de importação da obra de Karl Marx, do campo político para o científico, no espaço universitário brasileiro. Como este escopo era irrealizável, redimensionei e me ocupei de São Paulo. Para este objetivo, o “Seminário Marx” revelou-se estratégico.  Sobretudo pois a bibliografia tinha hábito de tratar a obra dos membros desse seminário como se estas pessoas nunca tivessem se encontrado para ler juntas. Eu diagnosticava que era necessário, para dar inteligibilidade à produção desses seminaristas, figuras que constituíram algumas disciplinas acadêmicas, estudar também o seminário como grupo.



Tecendo em Reverso- De acordo com sua pesquisa qual foi a diretriz de leitura de Marx adotada pelos jovens intelectuais da USP de 1958?

LIDIANE RODRIGUES – Todos leram Karl Marx sob a diretriz de um filósofo, o prof. José Arthur Giannotti.  Um dos efeitos de sua posição de “capitão do time” é a presença de um Marx epistemólogo pontilhando os trabalhos dos seminaristas. Se o método de leitura e as discussões da Filosofia invadiram outras áreas (História, Sociologia, Crítica Literária), em contrapartida, também ela era impactada pela agenda de investigação dessas disciplinas. Nelas, a peculiaridade do desenvolvimento capitalista na periferia do sistema mundial, particularmente no Brasil, era o eixo temático em torno do qual todos orbitavam. É interessante notar que o filósofo se ocupou desse assunto e que os seus colegas elaboraram aprofundadas reflexões de ordem epistemológicas voltadas para suas áreas específicas.


Tecendo em Reverso-  Em que medida dá-se a atuação de Florestan Fernandes à época e quais são as  convergências e divergências entre os intelectuais?

LIDIANE RODRIGUES – Os seminaristas não foram os primeiros leitores universitários de Marx. Na verdade, Florestan Fernandes, entre outros, já o liam. No entanto, há duas diferenças nestas leituras. A primeira diferença é a seguinte. Os leitores anteriores buscavam  em Marx a contribuição deste autor para sua disciplina científica. No caso de Florestan, tratava-se de estabelecer a “sociologia” de Marx. Como disse na questão acima, o seminário trilhou outros caminhos. Nada mais distante do que o historiador ler o “Marx historiador” ou o crítico literário o “Marx literário” – esta segmentação faz parte da leitura dos seminaristas, mas não a define.  A segunda diferença – que penso ser fundamental – consiste em que os leitores anteriores liam Marx isoladamente e eles leram em grupo. Isso tem pelo menos duas conseqüências, uma para os membros do grupo e outra para os que não fizeram parte dele (fossem eles contemporâneos ou sucessores).  Por um lado, ler em um grupo composto por membros de diversas disciplinas, implica uma capacidade potencial de difusão da leitura, cada um importando para sua área um conjunto de textos, uma certa maneira de lê-los, etc. Ignorar isso implica estar fora de uma certa discussão que definiu durante muito tempo chaves de entrada na obra de Marx. Ler em grupo, por outro lado, de modo contínuo e sistemático, foi uma atividade que operou homogeneizando léxico, práticas, grade de valores e modalidades de excelência intelectual. Grosso modo, a atividade coletiva de leitura inculcou um espírito de corpo entre eles. Há mais a dizer a respeito de Florestan e este grupo, mas tornaria esta entrevista uma aula. O que foi dito é o bastante para assinalar a divisa de propósito na leitura de Marx, do grupo e do sociólogo.



Tecendo em Reverso - Na tese você utiliza os conceitos “Marxismo dominante” e “Marxismo dominado”. Fale-nos um pouco sobre eles.

LIDIANE RODRIGUES – Quando percebi que estava me deparando com a estruturação do espaço de leitores universitários de Marx ainda em vigência no Brasil, tentei classificar os tipos de marxismo praticado pelo grupo e nas disciplinas dos membros do grupo.  Essas duas categorias denominam dois tipos de “marxismo” encontrados ainda hoje entre sociólogos: o dominante, senão menos politizado, refratando a política pela fidelidade à teoria, e, por isso, valorizando enormemente a discussão de autores com legitimidade teórica no marxismo. Em geral, é praticado pelos agentes mais capitalizados culturalmente (o que se mensura por origem social dos alunos/leitores/marxistas, escolas que estudou, etc.). Já o “marxismo dominado”, refrata a política não na teoria, mas no tema, sendo, por isso, mais quente e politizado, inclinando-se às pesquisas empíricas. Em geral é praticado pelos agentes menos capitalizados culturalmente. Esses dois pólos concentram propriedades sociais simetricamente opostas ainda hoje. Na tese, tinham origem na trajetória social e no percurso intelectual de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Em tempo: afirmo que linhas estruturantes da experiência que estudei têm vigência atual, pois no momento estou trabalhando com uma população de 900 marxistas universitários e tenho constatado isso.



Tecendo em Reverso- Em 1958 o Brasil estava sob a égide do governo de Juscelino Kubitschek num franco processo de internacionalização da economia. Na cultura, cinema novo e bossa nova emergiam. Até que ponto este contexto fomentou os estudos de O Capital?


LIDIANE RODRIGUES – Decerto esse clima fomentou estudos de Marx. Mas não os estudos de Marx realizados pelo grupo que investiguei. Esses jovens acadêmicos em início de carreira empenhavam-se precisamente em se desvencilhar de leituras excessivamente panfletárias e políticas. Não podiam mesmo fazer outra coisa e qualquer suspeita de leitura fácil ou panfletária destruiria suas vidas profissionais. O “impacto” desse clima consistia em rebaixar os partes no Rio de Janeiro, na avaliação deles, submissos demais aos mandos e desmandos do Estado. Eles estavam antes interessados em estabelecer uma barreira com o campo político, tão mais forte e exigente por tratarem do autor que por excelência faz a mediação desses campos. Tentei, na pesquisa, colocar em dúvida esses nexos meio apressados das explicações ad hoc que ligam o “clima” (cujos critérios de elaboração jamais são explicitados) aos projetos científicos e culturais.  Tomando outro exemplo: repete-se ad nauseum que a crise das grandes narrativas e a atenção aos objetos da micro-história resultam do fim da URSS. Todos já ouviram explicações desse tipo. De tão repetidas, ninguém se dá conta do insólito! Só entendemos a multiplicação de temas legítimos da “micro-história” se fizermos uma boa história social das disciplinas, da luta dos pesquisadores por fazerem valer seus temas, das linhas de financiamento, etc.  No entanto, é claro, a explicação ad hoc pelo “clima”, “contexto macro político” é mais palatável. Embora mais popular, eu a considero mais  criativa do que séria: afinal inventa problemas curiosos – teria o marxismo chegado à presidência? Nada disso. Entender como alguns desses seminaristas se tornaram grandes políticos implicaria investigar os liames sociais e nada intelectuais entre os campos políticos e acadêmicos no Brasil, as veleidades políticas dos intelectuais quando a oportunidade de ir para a política os alcança, a reestruturação das elites políticas, etc.