terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

MIRLA CISNE

Por Juliana Gobbe


A pesquisadora Mirla Cisne é graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) com mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutorado na mesma área pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente integra o Núcleo de Estudos sobre a Mulher Simone de Beauvoir e é também professora adjunta da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Em 2014 trouxe ao público brasileiro a obra: Feminismo e Consciência de Classe no Brasil e é sobre ela que a pesquisadora nos concede esta entrevista.


        Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.


Tecendo em Reverso - De que forma se deu a necessidade de pesquisar a temática “ Feminismo e consciência de classe no Brasil”?


MIRLA CISNE – Se deu pela necessidade de compreender como sujeitos inseridos em relações de alienação não apenas advindas do trabalho assalariado, mas, também, do patriarcado, conseguem romper com a naturalização da subordinação ao se reconhecerem como feministas. Esse reconhecimento não afeta apenas as vidas individuais das mulheres, mas, influencia em transformações coletivas  ao colidirem com os conservadorismos e hierarquias que marcam relações familiares, trabalhistas, religiosas e políticas (mesmo no campo da esquerda). Daí pensar na importância do feminismo para a luta de classes, já que sem essa perspectiva, a construção de uma nova sociedade tende a não romper com relações de opressão patriarcais. Em outras palavras, não me parece suficiente transformar o modo de produção capitalista do ponto de vista restritamente econômico, sem enfrentar relações estruturais que alimentam sua lógica de exploração e sua cultura de opressões que sustentam desigualdades, quais sejam: o patriarcado e o racismo. O feminismo classista e materialista enfrenta em uma perspectiva de totalidade todas as formas de opressão e exploração, mesmo no interior da esquerda que, infelizmente, não está imune aos preconceitos, relações de privilégio e práticas de violências patriarcais e racistas. Assim, penso que o feminismo busca desde o agora a coerência com valores libertários e igualitários nas relações sociais concretas que estabelecemos.



Tecendo em Reverso- Qual é a grande contribuição dada pelo feminismo materialista francófono às causas feministas?


MIRLA CISNE - Analisar de forma crítica e em uma perspectiva de totalidade, a construção sócio-histórica da exploração e opressão sobre as mulheres, apreendendo as relações sociais estruturantes dessa condição, quais sejam, as relações sociais de sexo, raça e classe, que atuam de forma consubstanciada e coextensivas. O destaque que fazemos a essa perspectiva feminista é, fundamentalmente, sua base materialista, que a distancia do idealismo e do culturalismo, ao partir da análise das determinações concretas das desigualdades sociais. A cultura possui determinações, permeadas por interesses e antagonismos de classe, bem como pelas relações étnico-raciais e de sexo. Desconsiderar isso, é isolar a cultura da sociedade, deslocando as determinações materiais das desigualdades para uma cultura atomizada e ideologizada.


Tecendo em Reverso - No seu livro o leitor encontra excertos de anúncios de empregos para mulheres do Sistema Nacional de Empregos (Sine) de São Paulo. Neles há a preponderância da “ditadura da beleza” como algo importante para o trabalho feminino. Quais são atualmente os grandes contribuidores para a naturalização de padrões de beleza no Brasil?


MIRLA CISNE – Centralmente, penso que a ditadura da beleza conta com uma forte difusora: a indústria da beleza que, permeada pelo racismo historicamente construído no Brasil, estabelece a beleza branca como o padrão. A mídia e o processo de mercantilização que empreende sobre o corpo feminino para venda de produtos também possui papel importante na naturalização dos padrões de beleza. É importante perceber que essa indústria da beleza consegue ditar normas que provocam necessidades de práticas invasivas ao nosso corpo, como cirurgias no nariz e nos seios, em especial. Lembro que na minha adolescência, o padrão de beleza eram seios pequenos, e via muitas mulheres buscando reduzir as mamas. Agora, o apelo é para seios grandes. Construiu-se a geração do silicone....  Até quando permitiremos que o nosso corpo seja moldado segundo os interesses industriais?
Por outro lado, movimentos feministas e negros  têm resistido a essa ditadura e fomentado processos de consciência que desmistificam o que é socialmente determinado como belo. Como exemplo, citamos a campanha “Solte seus cabelos e prenda seu racismo”, desenvolvida pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).


Tecendo em Reverso -  Em que medida o patriarcado orientou a vida das mulheres, bem como seus propósitos de dominação em relação a estas ao longo da história?


MIRLA CISNE – O patriarcado possui uma base material e ideológica muito fortes e absolutamente atuais. Considero a divisão sexual do trabalho uma relação material concreta para entendermos de onde a ideologia patriarcal parte e é construída. Essa divisão sexual que não apenas divide o que é considerado trabalho de homens e mulheres, mas os hierarquiza. Assim, o que é considerado masculino é valorizado e feminino desvalorizado. Essa divisão hierárquica se espraia em várias relações sociais, expressando-se, também, por exemplo, na divisão sexual dos brinquedos e brincadeiras entre meninos e meninas e na divisão sexual da política, na qual, geralmente, os homens ocupam os cargos de presidência e as mulheres de secretária. Daí vão surgindo as ideologias de naturalização de características consideradas femininas e masculinas, como se fossem determinadas biologicamente quando, na verdade, são socialmente construídas. Nesse caldo cultural, advindo de relações materiais concretas permeadas por interesses de classe, muitas mulheres são intensiva e extensivamente exploradas no mundo do trabalho (incluindo o trabalho doméstico). A força de trabalho feminina ao ser desvalorizada e muitas vezes não paga (como é o caso de grande parte do trabalho doméstico e procriativo), possibilita maiores lucros ao capital. Não é à toa, portanto, que os trabalhos mais precarizados e de menor remuneração possuem um sexo predominante: são mulheres, em sua maioria, negras.


Tecendo em Reverso - Como se dão as relações de movimentos feministas e socialistas na atualidade?


MIRLA CISNE – Penso que as mulheres feministas e socialistas conseguiram conquistar um espaço nas organizações de esquerda de tal forma que o feminismo é debatido e apreendido como parte de suas estratégias. Isso está presente tanto em partidos políticos como movimentos sociais.Todavia, isso não significa dizer que as tensões históricas entre feministas e alguns segmentos da esquerda tenham sido plenamente superadas. Ainda hoje, encontramos militantes que não compreendem ou não querem compreender a importância do feminismo, provavelmente porque incorporar o feminismo exige dos homens abrirem mão de privilégios nessa sociedade patriarcal. Infelizmente, ainda recebemos notícias de violências contra mulher praticadas por “socialistas”, bem como não é incomum que companheiras de militantes de esquerda não tenham a mesma disponibilidade de tempo para o exercício da política devido ao trabalho doméstico e procriativo. Então, a luta feminista permanece como uma necessidade diária de demonstrar que o socialismo que queremos é aquele que rompe com todas as formas de propriedade privada, inclusive, sobre o corpo e a vida das mulheres, tendo o compromisso radical com a liberdade e com o fim de todas as formas de opressão e exploração.



Foto: Divulgação