Por Juliana Gobbe
A pesquisadora Mirla Cisne é
graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) com
mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
doutorado na mesma área pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Atualmente integra o Núcleo de Estudos sobre a Mulher Simone de Beauvoir e é também professora adjunta da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte.
Em 2014 trouxe ao público
brasileiro a obra: Feminismo e Consciência de Classe no Brasil e é sobre ela que a
pesquisadora nos concede esta entrevista.
Foto: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Tecendo em Reverso - De que
forma se deu a necessidade de pesquisar a temática “ Feminismo e consciência de
classe no Brasil”?
MIRLA CISNE – Se deu pela
necessidade de compreender como sujeitos inseridos em relações de alienação não
apenas advindas do trabalho assalariado, mas, também, do patriarcado, conseguem
romper com a naturalização da subordinação ao se reconhecerem como feministas.
Esse reconhecimento não afeta apenas as vidas individuais das mulheres, mas,
influencia em transformações coletivas ao colidirem com os conservadorismos e
hierarquias que marcam relações familiares, trabalhistas, religiosas e
políticas (mesmo no campo da esquerda). Daí pensar na importância do feminismo
para a luta de classes, já que sem essa perspectiva, a construção de uma nova
sociedade tende a não romper com relações de opressão patriarcais. Em outras
palavras, não me parece suficiente transformar o modo de produção capitalista do
ponto de vista restritamente econômico, sem enfrentar relações estruturais que
alimentam sua lógica de exploração e sua cultura de opressões que sustentam
desigualdades, quais sejam: o patriarcado e o racismo. O feminismo classista e
materialista enfrenta em uma perspectiva de totalidade todas as formas de
opressão e exploração, mesmo no interior da esquerda que, infelizmente, não
está imune aos preconceitos, relações de privilégio e práticas de violências
patriarcais e racistas. Assim, penso que o feminismo busca desde o agora a
coerência com valores libertários e igualitários nas relações sociais concretas
que estabelecemos.
Tecendo em Reverso- Qual é a
grande contribuição dada pelo feminismo materialista francófono às causas
feministas?
MIRLA
CISNE - Analisar de forma crítica e em uma perspectiva de totalidade, a
construção sócio-histórica da exploração e opressão sobre as mulheres,
apreendendo as relações sociais estruturantes dessa condição, quais sejam, as
relações sociais de sexo, raça e classe, que atuam de forma consubstanciada e
coextensivas. O destaque que fazemos a essa perspectiva feminista é,
fundamentalmente, sua base materialista, que a distancia do idealismo e do culturalismo,
ao partir da análise das determinações concretas das desigualdades sociais. A
cultura possui determinações, permeadas por interesses e antagonismos de classe,
bem como pelas relações étnico-raciais e de sexo. Desconsiderar isso, é isolar
a cultura da sociedade, deslocando as determinações materiais das desigualdades
para uma cultura atomizada e ideologizada.
Tecendo em Reverso - No seu
livro o leitor encontra excertos de anúncios de empregos para mulheres do
Sistema Nacional de Empregos (Sine) de São Paulo. Neles há a preponderância da
“ditadura da beleza” como algo importante para o trabalho feminino. Quais são
atualmente os grandes contribuidores para a naturalização de padrões de beleza
no Brasil?
MIRLA CISNE – Centralmente,
penso que a ditadura da beleza conta com uma forte difusora: a indústria da
beleza que, permeada pelo racismo historicamente construído no Brasil,
estabelece a beleza branca como o padrão. A mídia e o processo de
mercantilização que empreende sobre o corpo feminino para venda de produtos
também possui papel importante na naturalização dos padrões de beleza. É
importante perceber que essa indústria da beleza consegue ditar normas que
provocam necessidades de práticas invasivas ao nosso corpo, como cirurgias no
nariz e nos seios, em especial. Lembro que na minha adolescência, o padrão de
beleza eram seios pequenos, e via muitas mulheres buscando reduzir as mamas.
Agora, o apelo é para seios grandes. Construiu-se a geração do
silicone.... Até quando permitiremos que
o nosso corpo seja moldado segundo os interesses industriais?
Por outro lado, movimentos
feministas e negros têm resistido a essa
ditadura e fomentado processos de consciência que desmistificam o que é
socialmente determinado como belo. Como exemplo, citamos a campanha “Solte seus
cabelos e prenda seu racismo”, desenvolvida pela Articulação de Mulheres
Brasileiras (AMB).
Tecendo em Reverso - Em que medida o patriarcado orientou a vida
das mulheres, bem como seus propósitos de dominação em relação a estas ao longo
da história?
MIRLA CISNE – O patriarcado
possui uma base material e ideológica muito fortes e absolutamente atuais.
Considero a divisão sexual do trabalho uma relação material concreta para
entendermos de onde a ideologia patriarcal parte e é construída. Essa divisão
sexual que não apenas divide o que é considerado trabalho de homens e mulheres,
mas os hierarquiza. Assim, o que é considerado masculino é valorizado e
feminino desvalorizado. Essa divisão hierárquica se espraia em várias relações
sociais, expressando-se, também, por exemplo, na divisão sexual dos brinquedos
e brincadeiras entre meninos e meninas e na divisão sexual da política, na
qual, geralmente, os homens ocupam os cargos de presidência e as mulheres de
secretária. Daí vão surgindo as ideologias de naturalização de características
consideradas femininas e masculinas, como se fossem determinadas biologicamente
quando, na verdade, são socialmente construídas. Nesse caldo cultural, advindo
de relações materiais concretas permeadas por interesses de classe, muitas
mulheres são intensiva e extensivamente exploradas no mundo do trabalho
(incluindo o trabalho doméstico). A força de trabalho feminina ao ser
desvalorizada e muitas vezes não paga (como é o caso de grande parte do
trabalho doméstico e procriativo), possibilita maiores lucros ao capital. Não é
à toa, portanto, que os trabalhos mais precarizados e de menor remuneração
possuem um sexo predominante: são mulheres, em sua maioria, negras.
Tecendo em Reverso - Como se
dão as relações de movimentos feministas e socialistas na atualidade?
MIRLA CISNE – Penso que as
mulheres feministas e socialistas conseguiram conquistar um espaço nas
organizações de esquerda de tal forma que o feminismo é debatido e apreendido
como parte de suas estratégias. Isso está presente tanto em partidos políticos
como movimentos sociais.Todavia, isso não significa dizer que as tensões
históricas entre feministas e alguns segmentos da esquerda tenham sido
plenamente superadas. Ainda hoje, encontramos militantes que não compreendem ou
não querem compreender a importância do feminismo, provavelmente porque
incorporar o feminismo exige dos homens abrirem mão de privilégios nessa
sociedade patriarcal. Infelizmente, ainda recebemos notícias de violências
contra mulher praticadas por “socialistas”, bem como não é incomum que
companheiras de militantes de esquerda não tenham a mesma disponibilidade de
tempo para o exercício da política devido ao trabalho
doméstico e procriativo. Então, a luta feminista permanece como uma necessidade
diária de demonstrar que o socialismo que queremos é aquele que rompe com todas
as formas de propriedade privada, inclusive, sobre o corpo e a vida das
mulheres, tendo o compromisso radical com a liberdade e com o fim de todas as
formas de opressão e exploração.
Foto: Divulgação