terça-feira, 10 de junho de 2014

ANGELA MENDES DE ALMEIDA

O blog Tecendo em Reverso inicia hoje uma série de entrevistas sobre os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil. A nossa primeira entrevistada é Angela Mendes de Almeida (Militante do Coletivo Merlino).
Luiz Eduardo da Rocha Merlino destacava-se nos anos 60 por seu brilhantismo como jornalista na Folha da Tarde, Jornal do Bairro e no jornal alternativo Amanhã. O jornalista militava bravamente contra a repressão que se instalava no país. No dia 15 de julho de 1971, Merlino foi levado para o DOI – CODI de São Paulo e submetido a tortura que o levou à morte.
A ditadura encerrou-se oficialmente no Brasil em 15 de março de 1985, porém, suas formas de opressão ainda hoje estão presentes no cotidiano do povo brasileiro.





                                                              Foto: Juliana Gobbe





Tecendo em Reverso- Como se deu sua militância política à época da ditadura?

ANGELA MENDES DE ALMEIDA - A minha trajetória é semelhante à da minha geração de militância, pois ocorreu através do movimento estudantil. Em 64, quando houve o golpe, eu tinha entrado na Faculdade de Direito da USP, na qual cursei apenas um ano. Posteriormente prestei um vestibular que à época constituía-se num  processo de entrevistas e prova escrita. Entrei para o curso de Ciências Sociais que funcionava na Rua Maria Antônia (São Paulo) .
No começo, no período entre os anos de 1964 e 1968, notava-se a repressão voltada principalmente para os sindicalistas, depois vai aos poucos se amainando.
Começam aí a pesar fatores culturais, tais como as peças do Teatro Arena e o show Opinião. No movimento estudantil surge a discussão de ideias, e, apesar das poucas informações que vinham de fora, uma série de ocorrências internacionais faz com que  as pessoas oriundas desse movimento se radicalizem  e entrem para organizações que naquele momento eram clandestinas. Eu tive uma breve passagem pelo PCB, mas divergi em relação a algumas situações e me filiei à POLOP que existia desde 1961 e naquele momento definia que o processo aqui no Brasil teria que ser pensado como  uma revolução socialista.

Tecendo em Reverso - O fato dos processos da ditadura serem atualmente divulgados na internet é de alguma forma um ponto positivo na conscientização da nova geração que tiver acesso a eles?

ANGELA MENDES DE ALMEIDA - Quando se fala de processos atuais, temos que distinguir dois tipos de processo. O processo que eu, viúva de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, assassinado no DOI-CODI em julho de 1971, e Regina Merlino, sua irmã, movemos contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsabilizando-o pela morte dele  é um processo na área cível. Esse tipo de processo utiliza-se de meandros para se chegar ao assunto em questão. Na verdade deveríamos estar movendo o processo na área criminal e desde o término da ditadura. Ocorre aí um grande empecilho, trata-se da Lei de Anistia do ano de 1979, que foi interpretada como sendo uma anistia também para os torturadores. Essa interpretação desembocou numa espécie de complô de silêncio entre os setores dominantes, inclusive entre aqueles que se denominavam  esquerda naquela época. Não se falava mais no assunto. Depois de 1985 o projeto da esquerda via PT era a eleição do Presidente Lula. Penso que o fato desta esquerda ter jogado todas as suas fichas na via parlamentar, fez com que se imaginasse que após a eleição tudo que havia ficado em aberto sobre os crimes da ditadura seria resolvido.  Mas não foi isso que aconteceu. A dificuldade em tratar deste assunto deu lugar a um silêncio doloroso para a maior parte de familiares dos mortos e desaparecidos, pois não havia espaço para falar.
Muitos processos na área cível foram movidos contra o Estado brasileiro por parte das famílias atingidas pela ditadura, mas entre 2005 e 2006 a família Teles moveu, na área cível, o primeiro processo contra o coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Nós, inspirados por esse processo, também o fizemos na intenção de declarar a responsabilidade de Ustra pela morte de Luiz Eduardo da Rocha Merlino.
No nosso caso, na primeira instância do processo, o coronel Ustra apresentou ao Tribunal de Justiça um embargo. Isto fez com que houvesse em 2008 três sessões de julgamento que foram muito desgastantes e eles concluíram que não discutiriam o mérito da questão que é a tortura e a morte, mas simplesmente defenderam  a não adequação da forma “ação declaratória”, que nossos advogados haviam usado. Sugeriu-se  então, sutilmente, que fizéssemos uma “ação por danos morais”. Primeiramente  ponderamos com nossos advogados, pois  toda ação por dano moral requer um pedido de  indenização material. Posteriormente aceitamos deixando o valor da indenização a critério do juiz. Obtivemos já, na primeira instância, uma decisão favorável.
Quanto aos processos na área criminal movidos pelo Ministério Público Federal, existem vários que foram arquivados, pois o Poder Judiciário interpreta que a Lei de Anistia impede-os. Recentemente alguns desses processos têm sido aceitos pelo Poder Judiciário em casos de desaparecidos políticos.
Todos esses processos permitiram que a imprensa falasse sobre estas questões. Aí chegamos ao fim da sua pergunta que é  se, através desses processos, a população fica sabendo um pouco da história que foi silenciada com esse complô do silêncio .É verdade, através deles a imprensa fala dessa história.

Tecendo em Reverso – Como foi  sua convivência política com Luiz Eduardo Merlino, bem como o processo de criação do Coletivo  e os objetivos do grupo?

ANGELA MENDES DE ALMEIDA – Na minha convivência com Merlino juntou-se afeto e militância, pois nos conhecemos nas assembleias estudantis, e assim como eu, ele também militava na POLOP. No início do relacionamento não morávamos na mesma casa, em parte por questão de segurança, até que começamos a viver juntos e a nossa casa tornou-se um aparelho da organização.
Depois do AI 5 vivenciamos um período duro de prisões e desaparecimentos de vários companheiros.
 Fomos então contactados por um companheiro brasileiro que militava na França, na Liga Comunista Revolucionária que era uma organização da Quarta Internacional. Este amigo nos convidou para fazer um estágio de seis meses na França, onde teríamos um contato maior com uma literatura de esquerda e sobretudo com movimentos de outros países, e particularmente com companheiros da Argentina, pois existia lá o PRT (Partido Revolucionario de los  Trabajadores).  Ao fim desse estágio nós dois voltaríamos ao Brasil e os demais companheiros para a Argentina. Merlino veio antes, pois eu estava clandestina e ele queria preparar a minha volta. Ele estava de posse dos seus documentos legais, inclusive passaporte, de maneira que entrou legalmente no país. Ao chegar no Brasil foi passar uns dias na casa da mãe dele em Santos. Houve então uma coincidência trágica, alguns companheiros foram presos e um deles sabia quem era o Nicolau (nome de guerra de Merlino)  e também onde morava a família dele. É que os repressores da ditadura conheciam a existência de um Nicolau mas não sabiam ainda quem era ele. A história da tortura dele foi uma barbárie. Resumidamente, ele permaneceu  no pau-de- arara sendo torturado por cerca de 24 horas, depois foi jogado numa cela solitária e lá ficou. Em dois dias uma gangrena poderosa tomou conta de sua perna, até ele ser retirado e levado para um hospital, onde veio a falecer. A família só conseguiu a entrega do corpo dele, porque sua irmã era casada com um delegado de polícia que exigiu que o corpo fosse entregue.
O Coletivo Merlino na verdade é um grupo simples, família e mais algumas pessoas amigas que se juntam a nós nas tarefas. Todas as decisões são tomadas coletivamente.
A revista Merlino Presente é financiada com as indenizações que recebemos dos governos estadual e federal pelo assassinato de Merlino. É preciso deixar claro que estamos à espera do julgamento  da segunda instância do processo, no Tribunal de Justiça.

Tecendo em Reverso – Como ocorreu a criação do site Observatório das Violências Policiais?

ANGELA MENDES DE ALMEIDA - Isso foi uma iniciativa minha. Eu militava no grupo Tortura Nunca Mais e houve  um tempo em que o grupo estava muito voltado para as reparações na Comissão da Anistia e pouco se falava do que está acontecendo hoje, ou seja, a tortura continua. E eu também queria um site em que pudéssemos homenagear o Luiz Eduardo Merlino, pois até então pouco se falava nele. Então, com alguns companheiros, já fora do GTNM-SP, criamos o site.
 Em 2006 a  professora Vera Lucia Vieira tomou conhecimento do trabalho e associou o Observatório ao Centro de Estudos de Historia da América Latina, da PUC. A partir daí nós fizemos  trabalhos sobre a violência atual com os alunos dessa Instituição. Durante muito tempo este site foi um instrumento de denúncia da violência atual.

Tecendo em Reverso -  Há vontade política no Brasil  para a desmilitarização da polícia?

ANGELA MENDES DE ALMEIDA -  Existe uma mentalidade na polícia, que é também da sociedade brasileira, de achar que existe um inimigo interno que são as populações pobres e negras das periferias e favelas. Ali a polícia  encontra sempre um “suspeito”. Os programas policialescos de fim de tarde também condicionam a sociedade a pensar dessa forma. Temos que ultrapassar estes obstáculos.



Por:Juliana Gobbe