segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
Marcos Lima
Dando continuidade ao
ciclo de entrevistas com os pesquisadores da educação no Brasil, o blog Tecendo
em Reverso entrevistou o pesquisador Marcos Lima que
defendeu em 2012 na Unicamp sua dissertação de mestrado com o tema :
Educação, trabalho e hegemonia no Região Metropolitana de Campinas: uma análise
da ação estratégica do “terceiro setor” e suas implicações político-pedagógicas.
A dissertação contou com a orientação do Drº
José Claudinei Lombardi (Unicamp).
O blog Tecendo em
Reverso parabeniza Marcos Lima por esta valiosa contribuição para a educação
brasileira.
Arquivo pessoal: Marcos Lima
Tecendo
em Reverso -Tratando-se de “educação e hegemonia”. Quais foram as contribuições
da obra de Antonio Gramsci quando se enfoca a crítica do “terceiro setor”?
MARCOS
LIMA - Primeiramente, gostaria de parabenizar a Juliana pela organização deste
importante instrumento de articulação entre a pesquisa acadêmica e a educação
básica. Sem iniciativas como esta, incorremos no equívoco de permitir, aludindo
a Marx e Engels, que nossos esforços sejam lançados à “crítica roedora dos
ratos”.
Gramsci
traz consigo uma premissa marxiana, segundo a qual “nenhuma sociedade se
dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desenvolvido todas as
formas de vida implícitas em suas relações”. Tal alerta nos impediu de
enveredarmos pelos caminhos tentadores de entendimento baseados no senso comum
que transformou a tal “sociedade civil” em um espaço de virtudes, enquanto o
Estado, identificado com a ditadura militar, era “satanizado”. Ao afirmar que
devemos distinguir no estudo de uma estrutura os movimentos orgânicos
(relativamente permanentes) dos movimentos de conjuntura (ocasionais,
imediatos, quase acidentais), o referencial teórico-metodológico gramsciano nos
impediu de realizarmos uma “crítica política miúda”, buscando numa periodização
mais ampla as raízes do “terceiro setor”. Qual não foi nosso espanto ao
perceber que a aliança dos EUA com setores civis de nossa sociedade, através da
“Aliança para o Progresso”, preparava um campo de ação estratégica que
neutralizava de forma preventiva o conflito social. Implementava-se em terras
tupiniquins um tipo de sociabilidade já destacado por Alexis de Tocqueville, em
sua obra A democracia na América,
escrita entre os anos de 1835 e 1840, fundamentada na prevenção dos conflitos
sociais, através da “preparação” dos indivíduos para a participação,
racionalizando-se, assim, a democracia. Seguindo as orientações metodológicas
de Gramsci, pudemos observar que as estratégias mais desenvolvidas de
hegemonia, no caso a estadunidense, através da mediação de seus intelectuais,
vinham em auxílio aos grupos nacionais dominantes, ameaçados pelo contexto
nacional-desenvolvimentista que possibilitava a emergência das camadas
populares como sujeitos históricos. Uma
forma de Estado mais complexa e eficiente na prevenção dos conflitos, sobretudo
aqueles fundamentados no antagonismo de classe, emerge a partir dos anos
pós-ditadura civil-militar. Trata-se de uma forma “integral” de Estado, em que
os aparelhos privados de hegemonia são incorporados, instrumentalizando-se as
iniciativas de emancipação das camadas subalternas. A partir da concepção
gramsciana de Estado, concluímos que a tal “lógica da sociedade civil
organizada”, advogada pelos defensores do “terceiro setor”, representava na
verdade a expansão dos “tentáculos” do Estado sobre os espaços de organização
dos movimentos populares, anulando seu caráter contestatório, preparando o
caminho para as reformas neoliberais orquestradas pelo capital monopólico
internacional.
Tecendo em
Reverso - Na sua dissertação, lemos:“O “terceiro setor” é apresentado como
solução para a separação entre o público e o privado. Através dessa esfera, o
público (Estado) e o privado (mercado) se articulariam, materializando-se no
“público, porém privado”, realizando-se atividades públicas através da iniciativa
privada”. De que maneira articula-se atualmente a “privatização” dos espaços
públicos brasileiros?
MARCOS LIMA - O
conceito “público, porém privado” foi cunhado por Luiz Carlos Bresser Pereira,
nomeado para o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado durante
o governo de Fernando Henrique Cardoso. Com este conceito, os reformadores do
Estado brasileiro adequavam-se ao discurso neoliberal da “terceira via”, cujo
principal representante é Antony Guidenns, mentor das reformas que deram origem
ao New Labor de Tony Blair na
Inglaterra. Como resposta àqueles que afirmavam ser o governo o inimigo e, por
outro lado, àqueles que defendiam a tese de que o Estado é a solução, a
“sociedade civil” foi transformada em “parceira do Estado na execução dos
serviços sociais”. Através desse sofisma, foram introduzidas diferentes formas
de privatização dos serviços públicos, seja através de sua transferência direta
às tais ONGs, seja através da atuação de instituições como a Federação das
Entidades Assistenciais de Campinas (FEAC), impondo-se o que tenho chamado de “reestruturação
flexível do trabalho escolar”. A tal “sociedade civil organizada” engloba desde
setores empresariais até representantes sindicais das diferentes categorias do
magistério, o que resulta em movimentos como o “Compromisso Todos pela
Educação”, que através de um “pacto social” acaba por controlar o conflito fundamentado
nos interesses de classe que marcam a história da educação brasileira.
Portanto, não se trata meramente de transferir o trabalho escolar às grandes corporações
educacionais que impõem à educação pública a lógica do mercado, transformando
em valor de troca (mercadoria) o valor de uso (instrumento de humanização) presente
na escola. Em última instância, institui-se o consenso em torno das “pedagogias
do aprender a aprender”, com a ajuda de setores populares que, ao enveredarem
de forma acrítica pelo campo de ação estratégica do “terceiro setor”, acabaram
por inserir-se estruturalmente no processo de expansão e controle do Estado
neoliberal sobre as formas de representação das camadas populares, processo
cujo resultado tem sido a institucionalização dos legítimos movimentos
populares em defesa da educação, tratando-se de uma forma sui generis de privatização, fundamentada na imposição da lógica
liberal. Atualmente, tenho pesquisado as transformações sofridas pela pedagogia
da educação popular durante esse período histórico, analisando a possível instrumentalização
da pedagogia freireana pelo ideário das reformas educacionais em curso,
fundamentadas no aprender a aprender, que tem como grande marca a perda da
especificidade do trabalho educativo, qual seja, nos dizeres de Saviani:
“produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade
que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o
objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos
culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para
que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta
das formas mais adequadas para atingir esse objetivo”. Ao que parece, socializar
a escola como instrumento de humanização não está na agenda do capital, o que
nos faz entender o esvaziamento de conteúdo da escola pública, expressão do
processo cada vez mais acentuado de privatização, sobretudo, do saber
elaborado, perpetuando-se a divisão do trabalho sobre os moldes capitalistas.
Tecendo em Reverso
- Como ocorrem as políticas neoliberais na educação brasileira?
MARCOS LIMA -Em
síntese: de um lado a reestruturação flexível do trabalho escolar anteriormente
citada, por outro a hegemonização da “pedagogia do aprender a aprender”,
substrato pedagógico do que Newton Duarte chama de “sociedade das ilusões”.
Todo o conhecimento histórico e acúmulo de experiências na trajetória humana
perderam a centralidade para um eterno presente, ao qual basta o
desenvolvimento de “habilidades” e “competências”, tendo os indivíduos que responder
às necessidades de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Um dos
elementos presentes na teoria da produção capitalista de Marx é a concorrência,
pertencendo à essência mais íntima do capital, que busca ocultar sua verdadeira
base, fundamentada na exploração do trabalho. Portanto, trata-se de um sofisma
o pilar “aprender a viver com os outros”, posto que, ao atingirmos patamares
tão elevados de tecnologia, capazes de ampliar cada vez mais o tempo livre para
os homens desenvolverem a totalidade de suas capacidades, a única justificativa
para a manutenção da concorrência é a tentativa ensandecida do capital
recuperar sua taxa de lucro, após as décadas de crise.
Tecendo em
Reverso - Qual é o papel da “sociedade civil” nos movimentos populares?
MARCOS LIMA - Primeiramente,
é necessário desmistificar o conceito de sociedade civil. A partir do processo
de “transição tutelada”, orquestrado pelos militares, a partir de meados da
década de 1970, esse conceito, juntamente com o conceito de cidadania, adquiriu
um lugar de destaque, não somente no léxico dos reformadores neoliberais, pois
grande parte da esquerda de forma licenciosa passou a utilizá-lo. À luz das
pistas deixadas pela obra de autores como Armand Dreifuss, minha pesquisa
demonstra que a dicotomia Estado/sociedade civil não colabora para o
entendimento do processo histórico que resultou na “satanização” do Estado e
hipertrofia da sociedade civil, ou, como diz Carlos Montaño, na transição da
lógica do Estado para a lógica da sociedade civil. Tal dicotomia oculta o
processo de expansão e controle dos conflitos sociais pelo Estado. Setores
conservadores da sociedade civil não somente participaram do golpe de 1964 como
colaboraram ativamente na construção do consenso a partir da década de 1980,
dissimulando-se a luta de classes através da ação estratégica do “terceiro
setor”. Destituindo-se de centralidade a categoria da luta de classes, o
conceito de sociedade civil se torna um nebuloso emaranhado de interesses
difusos que não permitem a percepção da totalidade concreta que é o sistema
capitalista.
Tecendo
em Reverso - A militante boliviana Domitila Chungarra é mencionada na sua
dissertação como um exemplo de luta frente às estratégias do capital. Como
ocorre a articulação feminina dentro do movimentos sociais contemporâneos?
MARCOS
LIMA - Domitila faleceu em 2012, momento em que minha pesquisa era concluída. A
referência a essa militante colabora para o enfrentamento da lógica
anteriormente descrita. Primeiramente,
pelo fato de que o enfrentamento desenvolvido pelo Comitê de Donas de Casa do
Distrito Mineiro Século XX, do qual Domitila era integrante, articula
fundamentalmente a libertação das mulheres à libertação sócio-econômica,
política e cultural do povo. Movimentos sociais populares brasileiros como o
Movimento dos Sem Terra, à semelhança dos mineiros bolivianos, buscavam em
meados da década de 1980 relacionar a luta das mulheres com a luta mais geral
da classe trabalhadora. Ainda que a questão feminina tenha suas
especificidades, não se desarticula da luta contra a exploração capitalista,
superando os limites da emancipação ancorada no acesso ao mercado e o fim da
opressão masculina. A partir dos anos de 1990, Nancy Frase, feminista
norte-americana, tem se destacado no mundo acadêmico como defensora do
cruzamento das questões referentes ao “reconhecimento” e as questões “redistributivas”
(próprias do socialismo). Homens e mulheres devem lutar em uníssono contra as
mazelas do sistema capitalista que potencializam a exploração não somente
destas últimas, como também de negros, imigrantes, crianças, homossexuais etc.
É preciso cuidado ao analisar os tais “novos movimentos sociais”, pois o que se
apresenta com a roupagem democrática da defesa dos direitos das “minorias” pode
incorrer na fragmentação das lutas sociais desenvolvidas pelos setores
subalternos, fragilizando-se a luta da classe trabalhadora. No que se refere à
educação especificamente, penso que a luta pela escola pública desenvolvida
pelos defensores da pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani se
constitui em um elemento estratégico para a articulação das diferentes lutas. A
construção de uma escola pública de qualidade, fundamentada no trabalho como
principio educativo, deve subsidiar a compreensão da totalidade social, ao
mesmo tempo em que a prática social ancorada na realização dessa tarefa pode possibilitar
a emergência de um novo individuo, cujos interesses coincidam com as
necessidades do gênero humano e sua busca pela omnilateralidade. A questão feminina deve ser articulada a essa
estratégia, posto que ao capital é até admissível a inserção das mulheres no
mercado de trabalho, desde que não dominem a complexidade do processo produtivo
e mantenham a concorrência entre os diferentes segmentos.
Abraços,
Juliana Gobbe
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